segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O brasileiro zangado

Por Luis Henrique Dias Tavares*

– Vocês pensam que brasileiro é bichinho manso? É não... Quer dizer, é de paz, mas quando desconhece, ah, meu senhor, afasta ligeiro, caso contrário leva faca e chumbo, pedra e pau, que esse meu povo briga com o que a mão recolhe e não olha os circunstantes. Quer escutar, vou contar um caso passado em Petrolina, cidade de Pernambuco que fica bem de cara para Juazeiro da Bahia. Dia de sábado, tem feira. E é feira de um tudo, desde capado gordo até cesto trançado, farinha, fumo e cachaça. Pois foi nessa feira que deram para implicar com um brasileiro de Icó, um Zé de tal e Silva, bichinho manso e comedido, cristão temente e respeitador. Era todo paciência. Pois é. Viram assim, abusaram. Primeiro, quiseram proibir que vendesse porquinho de mês. O Zé atendeu. Depois arranjaram decreto contra um jabá dourado de gordo, no que o Zé foi de acordo e cumpriu a exigência de barraca asseada e direita. Mas foi então que ficaram na conclusão da fraqueza do brasileiro e pinicaram astúcias e abusos, de modo que o Zé trabalhava para a maior família de comilões das feiras do Norte e Nordeste, sem tirar Campina Grande e Caruaru.
Foi uma vez, o Zé recusou uma taxa extra, parece que destinada a capitalizar um aniversário. Os donos quase deixam bicheira no lombo do Zé. Ele só disse uma coisa: “Não me zanguem, gente!” O pessoal riu. E nessa ronda de alegria, folgaram bem largo. Até que bateram o facão na barraca de Zé.
– Que é isso, gente? – Zé indagou.
– Acabou, homem de Icó – diziam os herodes. E estavam em grande farra, tudo de dente como andor de procissão. – Vai embora, homem de Icó.
– Vou não – disse o Zé.
Já falava um outro Zé, brasileiro magrinho, corzinha de enxofre, mão de trabalho e respeito, uns olhos que não diziam dois enganos.
– Eh, macho de pingo, vai logo obedecendo.
Iam ameaçando com as armas erguidas.
– Não me zanguem, gente – pedia o Zé de tal e Silva. E se via que rezava – Por Deus e a Virgem, não me zanguem.
– Sai para o lixo, cabra.
Nessas vozes, feriram Zé na altura do ombro, lá nele, bem aqui. E eram cinco. Daí, o Zé virou.
– Tou zangado, gente – foi um grito só.
Quando viram a besteira, Zé estava de faca e fuzil, já esfaqueara doi, matara outros três de bala, e agora parecia bicho, manchado de sangue, dando berros e gritando nomes, e ia avançando no povo, não via pai, não via mãe, nem mulher, nem criança. Os de paz, solicitavam paz, mas o Zé virava a mão de morte. Foi um esperdício: matou dez. Tão vendo? É, meu senhor, é como eu digo: brasileiro zangado é diferente.

* Historiador e ficcionista. É professor emérito da Ufba e membro da Academia de Letras da Bahia. O texto acima figura no seu livro Homem deitado na rede (Rio de Janeiro: Organização Simões, Ltda, 1969). Publicado, portanto, durante a ditadura militar, logo após o AI-5. O texto foi postado por seu filho Luis Guilherme Pontes Tavares (
lulapt@svn.com.br), que é colaborador regular deste site há algum tempo. Ele distingue “O brasileiro zangado” como uma advertência muito séria.

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