Indicação: Sentinela - Adriano S. Ribeiro
Como  Bill Gates tornou-se o homem mais rico dos EUA? Sua riqueza nada tem a  ver com os custos de produção do que a Microsoft vende: i.e., não é resultado de ele produzir bom software  a preços mais baixos que a concorrência, nem de ‘explorar’ seus  operários com melhores resultados (a Microsoft paga salários  relativamente altos aos operários intelectuais que contrata). Fosse  assim, a Microsoft já teria falido há muito tempo: as pessoas teriam  escolhido sistemas abertos, como o Linux que são tão bons, ou até  melhores, que os produtos Microsoft. Milhões de pessoas continuam a  comprar software da Microsoft porque a Microsoft impôs-se, ela  mesma, como padrão quase universal, praticamente monopolizou o campo,  encarnação do que Marx chamou de ‘intelecto geral’[1],  significando conhecimento coletivo em todas as suas formas, da ciência  ao saberes práticos. Gates efetivamente privatizou parte do intelecto  geral e enriqueceu apropriando-se do lucro que extraiu dessa  apropriação.
A  possibilidade de que o intelecto geral fosse algum dia privatizado  jamais passou pela cabeça de Marx, nem por perto de seus escritos sobre o  capitalismo (em boa parte porque Marx passou ao largo das dimensões  sociais do capitalismo). Mas a questão está na base das lutas de hoje em  torno da propriedade intelectual: o papel do intelecto geral – baseado  no conhecimento coletivo e na cooperação social – aumentou no  capitalismo pós-industrial, assim como a riqueza que se acumula, fora de  qualquer proporção com o trabalho usado para produzi-lo.
O resultado não está sendo, como parece que Marx esperava, a  autodissolução do capitalismo, mas a gradual transformação do lucro  gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada mediante a  privatização do conhecimento.
Vale  o mesmo para os recursos naturais, cuja exploração é um das principais  fontes de lucros no mundo. Daí brota a luta permanente entre os  aspirantes àqueles lucros: os cidadãos do Terceiro Mundo, ou as  corporações ocidentais. Há alguma ironia na evidência de que, ao  explicar a diferença entre o trabalho (que, usado, produz mais valia) e  outras commodities (cujo valor é integralmente consumido, ao serem usadas), Marx fale do petróleo como exemplo de commodity  ‘comum’. Hoje, qualquer tentativa de ligar aumentos e quedas do preço  do petróleo a aumentos e quedas nos custos de produção ou no preço do  trabalho explorado seria absolutamente sem sentido: os custos de  produção são desprezíveis, como proporção do preço que se paga pelo  petróleo, preço que, de fato, é o lucro que os proprietários dos  recursos podem exigir, graças à oferta limitada.
Uma  modificação na função do desemprego é outra das consequências do  aumento na produtividade, por causa do crescimento exponencial no  impacto do saber coletivo. O desemprego é produzido por um capitalismo  muito bem-sucedido (maior eficiência, maior produtividade etc.) – que  torna os trabalhadores cada vez mais inúteis: o que deveria ser uma  bênção – haver cada vez menos trabalho braçal – converteu-se em  maldição. Ou, dito de outro modo: a chance de ser explorado num trabalho  de longo prazo é vista hoje como privilégio. O mercado mundial, como  diz Fredric Jameson, é agora “um espaço no qual todos foram um dia  trabalhador produtivo e no qual o trabalho, por todas as partes, começou  a ser precificado fora do sistema”. No atual processo da globalização  capitalista, a categoria do desempregado já não está confinada ao  “exército de trabalho reserva”; inclui também, como Jameson escreve,  “essas populações massivas em todo o mundo que, como aconteceu, caíram  fora da história”, que foram deliberadamente excluídas dos projetos de  modernização do Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos  terminais sem esperança”: os chamados estados falidos (República  Democrática do Congo, a Somália), vítimas de fome epidêmica ou desastre  ecológico, presas na armadilha de pseudo arcaicos “ódios étnicos”,  objetos de filantropia de ONGs ou alvos da “guerra ao terror”.
A categoria dos desempregados expandiu-se, pois, e hoje inclui  vastas quantidades de pessoas, dos temporariamente desempregados,  passando pelos já não empregáveis e permanentemente desempregados, até  os habitantes de guetos e favelas (gente que o próprio Marx várias vezes  descartou como ‘lumpen-proletários’), chegando, finalmente, a  populações inteiras ou estados excluídos do processo capitalista global,  como os espaços em branco dos mapas antigos.
Há quem diga que essa nova forma de capitalismo oferece novas  possibilidades de emancipação. Essa, seja como for, é a tese de Hardt e  Negri em Multidão, onde tentam radicalizar Marx, dizendo que, se  se decapitar o capitalismo, obteremos o socialismo. Marx, como esses  autores o veem, foi historicamente limitado pela noção de trabalho  industrial mecanizado, centralizado, automatizado e hierarquicamente  organizado, razão pela qual entendeu o “intelecto geral” como algo de  certo modo semelhante a uma agência central de planejamento; só hoje,  com o crescimento do “trabalho imaterial”, essa virada revolucionária  tornou-se “objetivamente possível”. Esse trabalho imaterial estende-se  entre dois polos: do trabalho intelectual (produção de ideias, textos,  programas etc.) ao trabalho afetivo (dos médicos, babás e aeromoças).  Hoje, o trabalho imaterial é “hegemônico” no sentido em que Marx  proclamou que, no capitalismo do século 19, a grande produção industrial  era hegemônica: porque se impõe não pela força dos números, mas pelo  papel estrutural chave, emblemático que desempenha. Emerge daí um vasto  novo domínio chamado “o comum”: conhecimento partilhado e novas formas  de comunicação e cooperação. Os produtos da produção imaterial não são  objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção  imaterial é biopolítica, a produção da vida social.
Hardt  e Negri descrevem aí o processo que os ideólogos do capitalismo  ‘pós-moderno’ celebram como a passagem da produção material à produção  simbólica; da lógica centralista-hierárquica à lógica da  auto-organização e cooperação multicêntrica. A diferença é que Hardt e  Negri são efetivamente fiéis a Marx: tentam provar que Marx estava  certo, que o crescimento do intelecto geral no longo prazo é  incompatível com o capitalismo.
Os ideólogos do capitalismo pós-moderno dizem exatamente o  contrário: a teoria (e a prática) marxista continuam dentro dos limites  da lógica hierárquica do controle estatal centralizado e, portanto, não  conseguem lidar com os efeitos sociais da revolução da informação. Há  boas razões empíricas que sustentam essa posição: o que realmente levou à  ruína os regimes comunistas foi a inabilidade para acomodarem-se à nova  lógica social sustentada pela revolução da informação: tentaram dirigir  a revolução construindo dentro dela um outro projeto centralizado de  planejamento estatal em larga escala. O paradoxo está em que o que Hardt  e Negri celebram como a única chance de superar o capitalismo é  celebrado pelos ideólogos da revolução da informação como o nascimento  de um capitalismo ‘sem atrito’.
A  análise de Hardt e Negri tem alguns pontos fracos – o que explica como o  capitalismo conseguiu sobreviver ao que teria sido (em termos marxistas  clássicos) uma nova organização da produção que o teria tornado  obsoleto. Os autores subestimam a extensão em que o capitalismo de hoje  (pelo menos no curto prazo) já conseguiu privatizar o próprio intelecto  geral; subestimam também a evidência de que, mais que a burguesia, os  próprios trabalhadores estão-se tornando supérfluos (com número sempre  crescente de trabalhadores já não só temporariamente desempregados, mas  estruturalmente inempregáveis).
Se  o velho capitalismo envolvia idealmente um empreendedor que investia  dinheiro (seu ou emprestado) na produção que ele próprio organizava e  comandava e, na sequência, o empreendedor embolsava o lucro, um novo  tipo ideal começa a emergir hoje: já não se trata do empreendedor dono  da própria empresa, mas do gerente especialista (ou de um conselho de  gerência e administração presidido por um presidente executivo) que  administra uma empresa cujos proprietários são bancos (também  administrados por gerentes que não são os donos dos bancos) ou  investidores dispersos. Nesse novo tipo ideal de capitalismo, a velha  burguesia, que ficou sem função, é refuncionalizada como gerência  assalariada: a nova burguesia recebe salários, mesmo que seja  proprietária de partes da empresa; e parte de sua remuneração são ações  da própria empresa (‘bônus’ pelo ‘sucesso’).
Essa  nova burguesia ainda se apropria da mais valia, mas sob a forma  (mistificada) do que tem sido chamado de ‘salário extra’: recebem mais  que o ‘salário mínimo’ proletário (muitas vezes uma referência mítica,  da qual os exemplos reais que se conhecem na economia global é o salário  de fome de um operário de porão chinês na China ou na Indonésia), e é  essa diferença em relação aos proletários comuns que determina o seu  status. A burguesia no sentido clássico tende assim a desaparecer: os  capitalistas reaparecem como um subconjunto de trabalhadores  assalariados, como gerentes e administradores qualificados para ganhar  mais em virtude de sua competência (motivo pelo qual as “avaliações”  pseudo-científicas são cruciais: elas legitimam as diferenças nos  holerites). Longe de estar limitada a gerentes, a categoria dos  trabalhadores que ganham salário extra inclui todos os tipos de  especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos,  advogados, jornalistas, intelectuais e artistas. A mais valia assume  então duas formas: mais dinheiro (para os gerentes, etc.), mas também  menos trabalho e mais tempo livre (para – alguns – intelectuais, mas  também para os administradores do Estado, etc.).
O  processo de avaliação que qualifica alguns trabalhadores a receber  ‘salário a mais’ é mecanismo arbitrário de poder e ideologia, sem  qualquer vínculo com qualquer competência real; o salário a mais não  existe por razões econômicas, mas por razões políticas: para manter uma  ‘classe média’ que garanta a estabilidade social. A arbitrariedade da  hierarquia social não é erro; é, isso sim, questão central, com a  arbitrariedade da avaliação desempenhando papel análogo à arbitrariedade  do sucesso de mercado.
A violência ameaça explodir não quando há contingência demais no  espaço social, mas, sim, quando se tenta eliminar qualquer contingência.  Em La Marque du sacré, Jean-Pierre Dupuy concebe a hierarquia  como um de quatro procedimentos (‘dispositivos simbólicos’) cuja função é  tornar não humilhante a relação de superioridade: a hierarquia  propriamente dita (ordem imposta de fora que me permite experienciar meu  status social inferior como se não tivesse qualquer relação com meu  valor inerente); a desmistificação (procedimento ideológico que  demonstra que a sociedade não é uma meritocracia, mas o produto de lutas  sociais objetivas, que me permite evitar a dolorosa conclusão segundo a  qual a superioridade de outra pessoa seria resultado de seus méritos e  realizações); a contingência (mecanismo similar, pelo qual se  chega a entender que nossa posição na escala social depende de uma  loteria natural e social; os de melhor sorte são os que nasceram com os  genes certos, nas famílias ricas); e a complexidade (forças  incontroláveis levam a consequências imprevisíveis; por exemplo, a mão  invisível do mercado pode determinar o meu fracasso e o sucesso do meu  vizinho, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja muito mais  inteligente).
Diferente do que parece, esses mecanismos não contestam nem ameaçam a  hierarquia, porque a tornam palatável, dado que “o que dispara o  torvelinho da inveja é a ideia de que o outro merece a boa sorte que  tem, não a ideia oposta – a única que pode ser manifesta abertamente.”  Dupuy extrai dessa premissa a conclusão de que é grave erro pensar que  uma sociedade razoavelmente justa que se perceba como justa, estará, por  isso, livre de ressentimentos: é exatamente o contrário; precisamente  nesse tipo de sociedade os que ocupam posições inferiores buscam e  encontraram, em violentas irrupções de ressentimento, vazão para o  orgulho ferido.
Ligado a isso é o impasse que a China enfrenta hoje: o objetivo ideal das reformas de Deng foi introduzir o capitalismo sem qualquer burguesia (porque a burguesia seria a nova classe dominante); mas agora os líderes da China estão ante a dolorosa descoberta de que capitalismo sem hierarquia estável (que a existência da burguesia oferece) gera instabilidade permanente. Que caminho seguirá a China? Os ex-comunistas estão emergindo como os mais eficientes gerentes do capitalismo, porque a inimizade histórica que nutrem contra a burguesia como classe acomoda-se perfeitamente à tendência do capitalismo de hoje para tornar-se capitalismo gerencial sem uma burguesia – nos dois casos, como Stálin disse há muito tempo, “os quadros decidem tudo”. (Diferença interessante entre a China de hoje e a Rússia: na Rússia, os professores universitários são escandalosamente mal pagos – e, de fato, já são parte do proletariado; – na China, recebem confortabilíssimo salário ‘a mais’, mecanismo pelo qual sua docilidade fica assegurada.)
A  ideia do salário a mais também lança nova luz sobre os protestos  ‘anticapitalistas’ em curso. Em tempos de crise, os candidatos óbvios ao  ‘aperto do cinto’ são os baixos níveis da burguesia assalariada: o  protesto político é seu único recurso, se querem evitar unir-se ao  proletariado. Embora os seus protestos sejam nominalmente dirigidos  contra a brutal lógica do mercado, estão, de fato, protestando contra a  gradual erosão do lugar econômico privilegiado (politicamente) que  sempre foi deles. Ayn Rand tem uma fantasia em Atlas Shrugged (1957) [2],  de capitalistas ‘criativos’, fantasia que encontra sua realização  pervertida nas greves de hoje, que são greves, na maior parte, de uma  ‘burguesia assalariada’ movida pelo medo de perder seus privilégios (o  ‘a mais’ sobre o salário mínimo). Não são protestos proletários: são  protestos contra a ameaça de serem reduzidos a proletários. Quem se  atreve a fazer greve hoje, em tempos em que ter emprego fixo já é, só  isso, um privilégio? Não os trabalhadores mal pagos (no que resta) da  indústria têxtil etc., mas os trabalhadores privilegiados que têm  empregos garantidos (professores, funcionários dos serviços de  transporte público, policiais). Vale o mesmo para a onda de protestos de  estudantes: a principal motivação é, pode-se dizer, o medo de que a  educação superior não mais lhes assegure ‘salário a mais’ depois que  deixarem a universidade.
Ao  mesmo tempo, é evidente que o vasto renascimento de protestos do ano  passado, da Primavera Árabe à Europa Ocidental, de Occupy Wall Street à  China, da Espanha à Grécia, não pode ser reduzido a revolta da burguesia  assalariada. Cada caso tem de ser considerado à luz dos próprios  méritos. Os protestos de estudantes contra a reforma universitária na  Grã-Bretanha foram visivelmente diferentes dos tumultos de rua de  agosto, que foram carnaval de destruição consumista, verdadeira explosão  dos excluídos[3].
Pode-se dizer que os levantes no Egito começaram em parte como  revolta da burguesia assalariada (jovens educados em protesto contra a  ausência de perspectivas de vida para eles mesmos), mas esse foi apenas  um aspecto de protesto mais amplo contra um regime opressivo. Por outro  lado, os protestos não mobilizaram trabalhadores pobres e camponeses; e a  vitória eleitoral dos islamistas é indicação de o quanto era pequena a  base secular original das manifestações de rua.
A Grécia é caso especial: nas últimas décadas, foi criada ali uma  nova burguesia assalariada (sobretudo dentro da super ampliada base  administrativa do Estado) graças à ajuda financeira e aos empréstimos da  União Europeia; e os protestos foram motivados, em grande parte, contra  as ameaças de extinguirem-se aqueles privilégios.
Ao  mesmo tempo, a proletarização das faixas de salários mais baixos da  burguesia ocorre ao lado do oposto extremo: a remuneração economicamente  irracionalmente muito alta paga aos gerentes-executivos top e  banqueiros. Essa remuneração é economicamente irracional, sim: pesquisas  já comprovaram nos EUA que a remuneração dos gerentes-executivos top e banqueiros é inversamente proporcional ao sucesso das respectivas empresas.
Em vez de nos pormos a escrever crítica moralista contra essas  tendências, temos de lê-las como sinais de que o próprio sistema  capitalista já não é capaz, ele mesmo, de encontrar níveis de  estabilidade autorregulada. É o mesmo que dizer que o capitalismo está a  um passo de descontrolar-se completa e absolutamente.
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11/1/2012, Slavoj Žižek, London Review of Books (só Online)
http://www.lrb.co.uk/2012/01/
[1] MARX, Karl, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011 [trad. Mário Duayer] [NTs].
[2] Ver também “Slavoj Zizek fala à rede Al Jazeera: Agora, o campo está aberto”, 8/11/2011, em http://redecastorphoto.
 
 



