TELEANÁLISE
Sentinela - Malu Fontes*
No mês em que a cidade de São Paulo comemorou 458 anos, as cenas vistas na TV associadas à mais rica metrópole brasileira não foram de festa. As imagens vinculadas a São Paulo em janeiro, nos telejornais, foram as dos rotos e esfarrapados em confronto com a Polícia na Cracolândia, região Central da cidade, e as cenas de guerrilha urbana de milhares de famílias na favela de Pinheirinho, na Grande São Paulo, embora já em São José dos Campos. Sim, também houve imagens da chuva de ovos atirados contra o prefeito, Gilberto Kassab, na ida à missa de aniversário da cidade.
Pinheirinho  abrigava cerca de 6.000 pessoas em um terreno de 1,3 milhão de metros  quadrados, pertencente à massa falida de Naji Najas e invadida em 2004.  Independemente das questões de justiça e injustiça que podem ser  invocadas em relação à decisão judicial de reintegrar a posse do  terreno, expulsando os moradores e destruindo absolutamente todas as  moradias, três aspectos chamaram àtenção na cobertura telejornalística  durante a semana. Uma delas é repetida à exaustação sempre que uma  calamidade atinge contingentes populacionais pobres no Brasil, o que  equivale a dizer que é algo rotineiro nas manchetes jornalísticas: o que  acontece com o exército de gente pobre 24h após as hecatombes que  acontecem em suas vidas?
CUSPIDOS -  Onde estão, hoje, os desabrigados do Morro do Bumba, em Niterói (RJ),  dos deslizamentos da região serrana, também no estado do Rio, das  enchentes do ano passado em Alagoas, das dezenas de favelas  coincidentemente incendiadas em São Paulo ao longo de 2010 e 2011? Do  mesmo modo, onde estarão no futuro as seis mil pessoas expulsas de  Pinheirinho, sem tempo de sequer pegar roupas e documentos? Levando-se  em conta as multidões de pobres que praticamente todos os meses são  notícia na condição de vítimas de contingências, a maioria delas  vinculadas à sua condição sócio-econômica, associada ao crônico desmando  político no país, tem-se a impressão que o Brasil dispõe de um alçapão  para fazer desaparecer os pobres que são cuspidos ainda mais  radicalmente da fronteira mínima da dignidade em que vivem quando são  vítimas de uma tragédia.
No  telejornalismo, o roteiro é o mesmo: o contingente de desamparados é  mostrado, as lideranças políticas são entrevistadas e garantias do poder  público são dadas, anunciando que toda a assistência será dada às  vítimas. O telespectador já sabe que isso não é verdade. Pouquíssimos  dias depois é como se essas pessoas  desaparecessem por mágica, no tal  alçapão de pobres, e são substituídas logo a seguir nas manchetes por  outro grupo em situação ainda pior. No episódio de Pinheirinho, um  segundo aspecto a chamar àtenção, e que também costuma se repetir em  casos semelhantes de desocupação por ordem judicial e força policial,  são as razões que levam o poder público a permitir ou fazer vista grossa  à formação de um bairro durante oito anos e, quando milhares de pessoas  estão com suas vidas aparentemente estruturadas, arranca-se do chão em  menos de 24 horas tudo o que foi permitido em quase uma década.
MULHERES RICAS -  Por fim, tanto quanto a pancadaria entre moradores e policiais na  favela e no entorno de Pinheirinho, sooaram mais que cínicas as  declarações de representantes do poder público aos repórteres de TV  diante das acusações dos moradores de que a Polícia derrubou as casas  com todos os móveis dentro, não permitindo que os donos retirassem seus  pertences. Os argumentos dados à imprensa para que isso possa ter  acontecido fazem as Mulheres Ricas soarem como samaritanas humanitárias  da Cruz Vermelha: foi oferecida a todos os moradores a possibilidade de  lacrar e etiquetar todos os seus móveis e dar um endereço para onde se  queria que eles fossem enviados por um serviço da Prefeitura de São José  dos Campos. Se não pediram o serviço nem deram o endereço de entrega...   Ah, tá! Certamente disponibilizariam um depósito privado e cuidadoso  de móveis, talvez localizado nas cercanias de Alphaville, com garantias  anti-cupim e anti-ferrugem.
Se  fosse mesmo real a oferta desse serviço tão cuidadoso de etiquetagem e  depósito oferecido pela Prefeitura para os pertences existentes dentro  da casa dos expulsos, por que, então, a mesma Prefeitura deixaria  milhares de pessoas, incluindo velhos, crianças e doentes amontoados em  abrigos insalubres, improvisados em escolas públicas cheias de cocô de  pombo e sem condições de higiene? E milhares de pessoas abrigadas por um  padre numa igreja sem estrutura de banheiros, cozinha e vazos  sanitários?
CACHORRO - Esse país ou esse mundo andam mesmo muito estranhos. Uma população fica revoltada e quer pena de morte para uma histérica que agride um cachorro, uma prefeitura oferece etiquetagem mentirosa de móveis para milhares de pessoas que têm suas casas destruídas pela Polícia e, ao mesmo tempo, ninguém parece se importar com gente apanhando e morrendo na rua de qualquer metrópole e muito menos com famílias que perdem tudo e são obrigadas a viver como formigas, esmagadas umas sobre as outras em depósitos improvisados de gente.
*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. maluzes@gmail.com
 
