segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Enviados para morrer




Ecos do Silêncio

Sentinela - Gabriel Pinheiro*

Gelson Domingos da Silva, 46 anos, cinegrafista, enviado para morrer num plantão de domingo, este domingo. Um tiro de fuzil no peito. Fatalidade? Não. Um homem desarmado, com um colete de baixa qualidade, sem qualquer treinamento militar, em meio ao fogo cruzado entre traficantes cariocas e policiais do Bope. Morrer, num caso desses, não é fatalidade. É um risco assumido, calculado, que as emissoras e os executivos de redação impõem aos seus funcionários, pois a verdade é que a audiência vale mais que a vida dessas pessoas. Na mesma Band, a serviço da qual Gelson morreu, eu, trabalhando, fui assaltado, ameaçado de morte, e fiquei sob a mira de pistolas, juntamente com a minha equipe. Escapamos porque os adolescentes (sim, eram todos menores) não quiseram nos matar. É um terror que não desejo a ninguém, nem aos que me causaram essa agrura. Peço ao leitor desculpas por entrar em questões pessoais, mas creio que, neste caso, o depoimento de quem viveu isso de perto vem enriquecer a história e fornecer elementos para quem está de fora compreender o porquê do uso da forte expressão: enviados para morrer.

Foram 16 anos trabalhando nas emissoras de televisão de Salvador. Nos últimos, vivenciei, como testemunha e personagem, a escalada da violência, tanto nas ruas quanto na cúpula dos executivos, dos empresários da mídia, que não enxergam violência como risco, mas sim como produto principal à venda nas telas, em qualquer horário e para qualquer audiência. Os programas ditos policiais colocam na tela, todos os dias, operações, perseguições, das quais uma parte cada vez maior é autêntica. Já houve muita fraude, com bombinha simulando tiro e tudo o mais, mas isso não é mais necessário. Na Bahia, o crime cresce exponencialmente, e o tráfico também. Não adianta, para tentar ter um conforto mental, querer se enganar, e dizer a si mesmo que aquilo é simulação, não há perigo real.

Há quem se diverte com esse tipo de jornalismo, precisa saber que está se divertindo numa arena de gladiadores piorada. Em Roma, pelo menos, eram os ditos criminosos que entravam desarmados na arena. Agora, vão desarmados os inocentes, como eu, como Gelson. Uns vivem, outros, sucumbem.

Os executivos de redação, que trabalham de olho na minutagem do Ibope, divorciados de qualquer critério jornalístico quanto ao valor de uma notícia, vibram quanto mais perigosa e violenta é a incursão. Os repórteres e cinegrafistas são compelidos, obrigados mesmo, sob a perene ameaça da demissão num mercado cada vez pior, a cobrir essas reportagens. Os que não o fazem perdem valor nesse nefasto campo de forças. Quem se preserva é tido como covarde e inútil para a emissora. Há de ser substituído, não resta dúvida. Vi isso acontecer tantas vezes.

Outro ponto a ser considerado é a qualidade dos equipamentos de segurança, quando existem. Embora elas, as emissoras, não mereçam, por uma questão de ética pessoal não irei declinar nomes de instituições. Em muitas delas, nem existe colete. Cobrem a violência, ainda assim. Numa das quais trabalhei, com programas policiais locais e nacionais e dezenas de repórteres e cinegrafistas, havia apenas quatro coletes à prova de balas. Isso, no nome. Uma vez, com um alto oficial da PM, apresentei um dos coletes, em off, e pedi que ele me falasse da segurança. Ele me disse, sorrindo, que aquilo ali, no máximo, agüentaria umas pedradas. Quem se der ao trabalho – como eu me dei – de ler a etiqueta do colete verá a assustadora frase: “Esta peça não é resistente a objetos perfuro-cortantes”. Dá para penetrar um colete desses com uma faca, que dizer com um tiro, um tiro de fuzil.

Na última etapa da minha carreira como repórter de rua (um ser de quinta categoria, na descrição profissional feita por um famoso executivo de redação paulista, que nos anos 90 chegou a Salvador com ares de missionário), tive o desprazer de atuar a serviço de um tablóide policialesco de veiculação nacional, ancorado por um lunático. Fui obrigado, ninguém jamais me perguntou se eu queria. Era ir ou sair, como quase tudo em televisão. Em 15 dias, acompanhei cerca de cinco operações policiais. Senti, mais uma vez, o medo da morte. Numa delas, de madrugada, no subúrbio de Salvador, em frente à casa de um traficante, vi que até os policiais, treinados pela Rondesp, a tropa que mais mata na Bahia – conforme dados da própria SSP; notei que mesmo eles estavam com medo. E nessas horas, amigo, não existe isso de proteger a imprensa não. Quando a sua vida também está em risco, o policial até esquece que tem um repórter ali, desarmado, destreinado, vulnerável, enviado para morrer. Nunca estive em meio a uma troca de tiros. Gelson não deu a mesma sorte. Na favela de Antares, em Santa Cruz, zona oeste do Rio, os tiros começaram. Ele viu um fuzileiro, um bandido com um fuzil. Correu, destreinado, assustado e assustou também o bandido. A diferença é que este último tinha um fuzil e disparou. No peito. Gelson já chegou morto ao posto médico.

O sindicato, com justíssimas razões, responsabiliza a emissora pela morte e diz que vai exigir que a família de Gelson seja amparada. Como? Como amparar os filhos, a mulher, os netos? E mais, como exigir? No meu caso, processei a emissora a serviço da qual fui ameaçado de morte. Lá se vão cinco anos e o processo ainda corre. Como não corre em segredo de justiça, nada me impede de falar dele aqui, mas apenas cito, para que se saiba das dificuldades que se enfrenta na luta contra os interesses da mídia. Portanto, não se enganem. Não há aqui qualquer acaso, qualquer fatalidade. Há cálculo. Para a grande mídia, como estruturada hoje, audiência vale mais que qualquer coisa, vale mais que a vida dos bandidos expostos, humilhados na cadeia, antes de qualquer julgamento, por repórteres que ali se sentem tão poderosos. Repórteres esses que, sem saberem, valem para as emissoras tão pouco quanto aqueles mesmos bandidos que eles ofendem e achincalham.

*Gabriel Pinheiro é Jornalista e Analista de Comunicação do Ministério Público do Estado da Bahia. Já atuou como redator, repórter, editor, apresentador e professor de Jornalismo e Relações Públicas. Escreve toda semana a coluna Ecos do Silêncio para o Sentinelas da Liberdade.

Cor de rosa para quem?

TELEANÁLISE


Sentinela - Malu Fontes*


Se até bem pouco tempo o câncer era uma doença cujo nome jamais se ousava pronunciar, a verdade é que hoje se perdeu o medo, se não da doença, pelo menos da palavra. Recentemente, todos os telejornais têm falado e muito da doença. Casos de personalidades e autoridades têm contribuído incessantemente para que o assunto tenha passado a ser abordado sem o tom de estigma que até bem pouco tempo marcava a patologia. No campo da política brasileira, os casos emblemáticos do ex-vice presidente José de Alencar e da presidente Dilma Roussef serviram como última fronteira para a abordagem sem tabus pela imprensa, mesmo porque o câncer que Dilma enfrentou tornou-se, de forma direta e indireta, assunto até mesmo de campanha eleitoral.

Nos últimos meses, os casos do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, do ator Reinaldo Gianecchini e a morte de Steve Jobs ocuparam páginas e páginas, telas e telas na imprensa. Boa parte do mundo, aliás, só descobriu que tinha um pâncreas quando o mago da Apple morreu com um câncer no órgão. Entretanto, foi com o diagnóstico do câncer de laringe do ex-presidente Lula que o assunto foi parar nos assuntos mais citados na imprensa e mais comentado nas redes sociais. Como todo bom assunto que hoje se preza, o diagnóstico do presidente ganhou fertilidade e amplitude máxima de comentários foi mesmo nas redes sociais, onde a censura é frouxa ou inexistente e onde ninguém se sente constrangido de mostrar o pior de si quando se trata de manifestar as paixões e os ódios pessoais.

PIADAS - Sim, o diagnóstico de Lula foi imediatamente transformado em cobertura nacional por parte da imprensa e na mesma velocidade e escala foi transformado em uma série de piadas de muito mau gosto, parodiando as campanhas de advertência do Ministério da Saúde e transformou-se também em briga política entre os aficcionados contra e a favor de Lula, em torno de uma suposta incoerência ou contradição do ex-presidente, que sempre elogiou o Sistema Único de Saúde, mas que na hora em que a saúde lhe fez falta correu para um dos melhores e mais caros hospitais privados do país.

Na esteira e na histeria dos ataques feitos ao fato de Lula se tratar no Hospital paulistano Sírio Libanês, não faltaram também as lembranças, por parte da imprensa, de que o ex-vice-presidente José Alencar, embora tenha virado nome de um centro de tratamento público de câncer em São Paulo, em vida, na sua hercúlea luta contra a doença, nunca colocou o pé em um serviço público de oncologia. Alencar, assim como qualquer autoridade ou homem de sua posição sócio-econômica (um dos empresários mais ricos do Brasil), sempre teve à sua disposição ao longo das 17 cirurgias a que se submeteu, entre 1997 e 2011, não apenas os melhores hospitais e serviços privados de oncologia no Brasil, mas também os melhores e mais caros centros de excelência de tratamento da doença no exterior.

IGREJINHA - No contexto da repercussão do diagnóstico da doença do ex-presidente na imprensa, na televisão, e, sobretudo, diante no circuito extra-imprensa, representado pelas redes sociais quanto a alegada incoerência de Lula ao recorrer aos serviços sofisticados e ágeis de um hospital privado e não ao SUS, uma coincidência merece ser lembrada. Durante todo o mês de outubro, a televisão veiculou, em todo o País, a campanha Outubro Rosa, que consistia em convidar de modo extremamente carinhoso e acolhedor todas as mulheres brasileiras a irem a um serviço médico fazer uma mamografia para prevenir o câncer de mama.

Até aí, tudo lindo. Mais lindas ainda eram as matérias Brasil afora mostrando determinados pontos turísticos de cidades do Oiapoque ao Chuí iluminados de rosa, do Cristo Redentor à torre da igrejinha de cidades onde o vento faz a curva, passando pelas esculturas rechonchudas de Eliana Kertesz, as Meninas do Brasil, em Ondina, Salvador. Mas, assim como nos elogios de Lula à eficiência do SUS, será que, no mantra midiático do Outubro Rosa, não faltou dizer a todas as mulheres que decidem, ou pior, que precisam fazer uma mamografia, onde estavam os serviços públicos cor de rosa onde elas encontrariam um mamógrafo funcionando e um mastologista para atendê-las e, se fosse o caso, para tratá-las com a celeridade que a doença exige? Para quais mulheres brasileiras havia mesmo esse outubro cor de rosa que permitisse aceitar o convite bonitinho, encampado por atrizes, cantoras e primeiras-damas bem intencionadas, para cuidar da prevenção da saúde, fazendo uma mamografia? Faltou dar o endereço do serviço público onde fazer o exame. Para driblar o câncer, é necessário muito mais que campanhas publicitárias coloridas e boas trilhas sonoras.


*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. maluzes@gmail.com
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