segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Cor de rosa para quem?

TELEANÁLISE


Sentinela - Malu Fontes*


Se até bem pouco tempo o câncer era uma doença cujo nome jamais se ousava pronunciar, a verdade é que hoje se perdeu o medo, se não da doença, pelo menos da palavra. Recentemente, todos os telejornais têm falado e muito da doença. Casos de personalidades e autoridades têm contribuído incessantemente para que o assunto tenha passado a ser abordado sem o tom de estigma que até bem pouco tempo marcava a patologia. No campo da política brasileira, os casos emblemáticos do ex-vice presidente José de Alencar e da presidente Dilma Roussef serviram como última fronteira para a abordagem sem tabus pela imprensa, mesmo porque o câncer que Dilma enfrentou tornou-se, de forma direta e indireta, assunto até mesmo de campanha eleitoral.

Nos últimos meses, os casos do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, do ator Reinaldo Gianecchini e a morte de Steve Jobs ocuparam páginas e páginas, telas e telas na imprensa. Boa parte do mundo, aliás, só descobriu que tinha um pâncreas quando o mago da Apple morreu com um câncer no órgão. Entretanto, foi com o diagnóstico do câncer de laringe do ex-presidente Lula que o assunto foi parar nos assuntos mais citados na imprensa e mais comentado nas redes sociais. Como todo bom assunto que hoje se preza, o diagnóstico do presidente ganhou fertilidade e amplitude máxima de comentários foi mesmo nas redes sociais, onde a censura é frouxa ou inexistente e onde ninguém se sente constrangido de mostrar o pior de si quando se trata de manifestar as paixões e os ódios pessoais.

PIADAS - Sim, o diagnóstico de Lula foi imediatamente transformado em cobertura nacional por parte da imprensa e na mesma velocidade e escala foi transformado em uma série de piadas de muito mau gosto, parodiando as campanhas de advertência do Ministério da Saúde e transformou-se também em briga política entre os aficcionados contra e a favor de Lula, em torno de uma suposta incoerência ou contradição do ex-presidente, que sempre elogiou o Sistema Único de Saúde, mas que na hora em que a saúde lhe fez falta correu para um dos melhores e mais caros hospitais privados do país.

Na esteira e na histeria dos ataques feitos ao fato de Lula se tratar no Hospital paulistano Sírio Libanês, não faltaram também as lembranças, por parte da imprensa, de que o ex-vice-presidente José Alencar, embora tenha virado nome de um centro de tratamento público de câncer em São Paulo, em vida, na sua hercúlea luta contra a doença, nunca colocou o pé em um serviço público de oncologia. Alencar, assim como qualquer autoridade ou homem de sua posição sócio-econômica (um dos empresários mais ricos do Brasil), sempre teve à sua disposição ao longo das 17 cirurgias a que se submeteu, entre 1997 e 2011, não apenas os melhores hospitais e serviços privados de oncologia no Brasil, mas também os melhores e mais caros centros de excelência de tratamento da doença no exterior.

IGREJINHA - No contexto da repercussão do diagnóstico da doença do ex-presidente na imprensa, na televisão, e, sobretudo, diante no circuito extra-imprensa, representado pelas redes sociais quanto a alegada incoerência de Lula ao recorrer aos serviços sofisticados e ágeis de um hospital privado e não ao SUS, uma coincidência merece ser lembrada. Durante todo o mês de outubro, a televisão veiculou, em todo o País, a campanha Outubro Rosa, que consistia em convidar de modo extremamente carinhoso e acolhedor todas as mulheres brasileiras a irem a um serviço médico fazer uma mamografia para prevenir o câncer de mama.

Até aí, tudo lindo. Mais lindas ainda eram as matérias Brasil afora mostrando determinados pontos turísticos de cidades do Oiapoque ao Chuí iluminados de rosa, do Cristo Redentor à torre da igrejinha de cidades onde o vento faz a curva, passando pelas esculturas rechonchudas de Eliana Kertesz, as Meninas do Brasil, em Ondina, Salvador. Mas, assim como nos elogios de Lula à eficiência do SUS, será que, no mantra midiático do Outubro Rosa, não faltou dizer a todas as mulheres que decidem, ou pior, que precisam fazer uma mamografia, onde estavam os serviços públicos cor de rosa onde elas encontrariam um mamógrafo funcionando e um mastologista para atendê-las e, se fosse o caso, para tratá-las com a celeridade que a doença exige? Para quais mulheres brasileiras havia mesmo esse outubro cor de rosa que permitisse aceitar o convite bonitinho, encampado por atrizes, cantoras e primeiras-damas bem intencionadas, para cuidar da prevenção da saúde, fazendo uma mamografia? Faltou dar o endereço do serviço público onde fazer o exame. Para driblar o câncer, é necessário muito mais que campanhas publicitárias coloridas e boas trilhas sonoras.


*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. maluzes@gmail.com

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