No Brasil ainda são poucos os jornalistas que se arriscam a
explorar novos caminhos para a profissão. Nos Estados Unidos eles são
até bem numerosos, mas aqui o projeto Pública é um dos raros a tentar
um novo modelo de exercício do jornalismo. Natalia Viana, uma repórter
com dez anos de experiência, com mestrado na Inglaterra e colaborações
com publicações estrangeiras, é junto com Marina Amaral e outros dez
colaboradores uma das responsáveis pelo projeto Pública,
que conta com financiamento da Fundação Ford e da Open Society, duas
instituições estrangeiras que apoiam novas iniciativas na imprensa.
Natalia explica como opera a agência Pública.
Como você compararia o projeto Pública com o ProPublica, dos
Estados Unidos? Existem outros projetos similares em curso noutros
países, como o Notify, o Wikinews, Spot Us, NewsMill e Locast, só para
citar alguns. Quais os grandes diferenciais do Pública em relação a
esses projetos?
Natália Viana – A Pública tem uma ligação direta
com o modelo da ProPublica; ela é inspirada nos centros de jornalismo
investigativo sem fins lucrativos que surgiram nos Estados Unidos e
hoje em dia começam a aparecer em diversos países. O ProPublica não é o
primeiro deste tipo de organização nos EUA, longe disso. Desde o fim da
década de 1970, organizações sem fins lucrativos para jornalismo
investigativo, pautado pelo interesse público, existem nos EUA. Um dos
mais antigos é o Center for Investigative Reporting, com o qual temos
parcerias em alguns projetos. O ProPublica era até recentemente o mais
“rico” destes centros, com um orçamento de cerca de 10 milhões de
dólares por ano. Muitos desses centros são parceiros da Pública, como
o Center for Public Integrity, o Bureau of Investigative Journalism, o
CIPER-Chile, 100 reporters e Florida Center for Investigative
Reporting. A Pública participa, em nível internacional, do Global
Investigative Network, uma rede de organizações similares do mundo todo.
A Pública vem dessa tradição, mas voltada para o contexto
brasileiro. Ela é obviamente uma organização muito menor que a
ProPublica — estamos ainda no nosos primeiro ano de existência — mas
tem uma missão semelhante: a de produzir reportagens de fôlego,
pautadas pelo interesse público, visando ao fortalecimento do direito à
informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos
direitos humanos. Seus principais pilares são o interesse público e o
jornalismo independente.
Os outros projetos que você citou são muito diferentes. O Spot.us é um site de crowdfunding;
o Wikinews é um site de jornalismo colaborativo; o News Mill é um site
de opinião; e o Locast é um site que permite formatos de mídia
interativos para as pessoas montarem suas histórias. O que eles têm a
ver com a Pública? O fato de serem iniciativas jornalísticas novas,
baseadas na internet, que exploram os limites de modelo, formato,
organização da produção e financiamento do jornalismo. Eu encaixaria o
WikiLeaks no mesmo rol de iniciativas. Nesse sentido, a Pública busca
tanto uma experimentação de modelo (sem fins lucrativos ou comerciais),
de formato (com vídeo, uso de mídias sociais e reportagens longas e
aprofundadas, por exemplo, raras de serem encontradas na web) e de
organização do trabalho através de modelos de parcerias com repórteres,
organizações e veículos.
Qual a audiência procurada para o projeto Pública?
N.V. – A Pública não é um site e, portanto, não
tem um público-alvo. Somos uma ONG cuja missão é produzir e fomentar o
jornalismo de qualidade. Sempre dizemos que o nosso site (www.apublica.org)
é um veículo-meio e não um veículo-fim. Colocamos toda nossa produção
ali para que seja “roubada” por outros veículos (temos até uma seção
que se chama “Roube nossas historias”). Tudo é feito em creative commons para
que seja utilizado livremente por outros veículos, desde que citada a
fonte e com link para o nosso site. Nosso objetivo é que o maior número
possível de jornalistas e veículos utilize nosso material. A ideia é
espalhar nossas histórias. Acreditamos que a informação de qualidade
deve ser livremente disseminada, já que é essencial para qualificar o
debate democrático sobre os grandes temas nacionais.
Qual a relevância que vocês atribuem à curadoria informativa no projeto do Pública?
N.V. – Total. Nossas pautas são definidas de
acordo com temas que consideramos de alta relevância pública para o
momento e para o futuro próximo no Brasil. Por isso definimos três
eixos investigativos que orientam nosso trabalho nesses primeiros anos:
"Tortura e Ditadura", sobre a violência do Estado sobre o cidadão
(publicamos reportagens sobre a ditadura, como "Mr. Dops", e tortura);
"Amazônia", tema diretamente ligado ao modelo de desenvolvimento que o
país elegeu, com uma série de reportagens sobre uma líder ameaçada de
morte por madeireiros no sul da Amazônia e outras, de reportagens a
jornalismo de dados; e, por fim, os "Megaeventos", oportunidade e risco
para o país e para a população com a proximidade da Copa e Olimpíadas.
Nesse terceiro eixo desenvolvemos desde o início do ano uma experiência
de jornalismo cidadão - o Blog Copa Pública - e produzimos reportagens
investigativas sobre o mundo do futebol.
Qual a importância que o modelo de sustentabilidade financeira do projeto Publica atribui ao chamado micro-funding? E qual a estratégia que desenvolvem para viabilizá-lo?
N.V. – Não tenho certeza do que você quer dizer com micro-funding.
Se quer dizer pequenos projetos apoiados de maneira individual
(digamos, com valor até R$ 10 mil), nós achamos muito importante, mas
tivemos poucas experiências do tipo. Recentemente fechamos uma parceria
nesse sentido com a Rede Brasil Atual, que está co-financiando quatro
microbolsas de reportagem selecionadas por meio do Concurso de
Microbolsas que lançamos no nosso site. Fizemos uma chamada de projetos
de reportagem, recebemos 70 projetos e premiamos quatro. Como havia
outros muito bons que não foram contemplados, a Rede Brasl Atual entrou
com uma parceria para financiar outros projetos.
O modelo de sustentabilidade financeira é hoje o grande
dilema de quase todas as novas iniciativas voltadas para o
desenvolvimento do jornalismo na web. Existe algum modelo que vocês
tomam como benchmark?
N.V. – A sustentabilidade financeira é o grande
dilema do mundo hoje – não só no jornalismo e nem só na web! O
jornalismo entra dentro de um caldeirão de novas iniciativas integradas
à chamada cultura digital, e que questiona inclusive a organização
econômica com novos modelos. Não é à toa que a Pública está sediada na
Casa da Cultura Digital, em São Paulo. Não há, na web, um modelo que
consideramos mais bem-sucedido neste sentido. Veja: o Facebook acabou
de abrir o seu IPO; o Twitter busca uma maneira de arrecadar dinheiro
com propaganda; o Youtube recentemente se encharcou de anúncios. Há
três anos, nada disso teria sido previsível. Essa é a maior riqueza
deste momento: não há modelos. Temos que inventá-los.
Uma das propostas do Pública é desenvolver o jornalismo
investigativo, mas existem duas vertentes possíveis: a de consumo
imediato para atendimento de questões da agenda noticiosa diária; e
investigações de maior profundidade e complexidade que demandam mais
tempo e dinheiro. Qual das duas é prioritária para o Publica?
N.V. – O termo jornalismo investigativo é
polêmico. Para nós, o jornalismo investigativo é aquele que se
aprofunda num tema de maior complexidade e o estuda a fundo. Aqui no
Brasil, é a boa e velha reportagem – e por isso somos uma “agencia de
reportagem e jornalismo investigativo”. Não é à toa que as duas
coordenadoras da Pública aprenderam jornalismo com Sérgio de Souza – fundador e editor de dezenas de publicações baseadas em reportagem desde sua participação no dream team da Realidade – e a sua turma. Somos de uma linhagem de jornalistas que acreditam na reportagem, e acreditam no repórter.
Não fazemos notícia. Há uma frase do jornalista americano T. D.
Allman que gosto muito, e resume o que sentimos com relação ao
jornalismo investigativo: “Jornalismo genuinamente objetivo é aquele
que não apenas apura os fatos, mas compreende o significado dos
acontecimentos. É impactante não apenas hoje, mas resiste à passagem do
tempo. É validado não apenas por 'fontes confiáveis', mas pelo
desenrolar da história. E dez, vinte, quinze anos depois ainda serve
como espelho verdadeiro e inteligente do que aconteceu”.
Fazer jornalismo sério na web, levando em conta o público,
coloca vocês numa rota de colisão com a chamada grande imprensa. Este
conflito pode alterar a estratégia editorial e a sustentabilidade
financeira do projeto?
N.V. – Não acredito que haja uma rota de
colisão. A Pública não é um veículo, e portanto não vem buscar o espaço
que um veículo ocupa. Ela pretende ser uma agência, um produtor e
distribuidor de conteúdo em creative commons. Queremos que a mídia tradicional utilize também o nosso material. [Creative
Commons é um projeto global, presente em mais de 40 países, que cria um
novo modelo de gestão dos direitos autorais. Ele permite que autores e
criadores de conteúdo, como músicos, cineastas, escritores, fotógrafos,
blogueiros, jornalistas e outros, possam permitir alguns usos dos seus
trabalhos por parte da sociedade.]
Há uma forte tendência entre os projetos de jornalismo na web
de explorar a vertente local, hiperlocal e comunitária. Como vocês veem
esta alternativa?
N.V. – Pessoalmente acho excelente. No contexto
brasileiro, de uma grande concentração da mídia, acho realmente
fantástico. E pode ser bem feito sem grandes recursos. Há um enorme
campo para o que chamamos de jornalismo cidadão. Além das reportagens
aprofundadas que produzimos a partir deste ano (que é o primeiro ano de
funcionamento da organização com estrutura, financiamento da Ford
Foundation e da Open Society Foundation), temos esse blog que é uma
experiência de jornalismo cidadão: o Copa Publica, cujo objetivo é
acompanhar como as organizações populares estão se preparando para
debater tudo o que envolve a Copa do Mundo de 2014. Um evento que vai
mexer com o Brasil de uma maneira poderosa, não só estruturalmente como
simbolicamente. E já está.