segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Prova na cueca e aberração local

TELEANÁLISE

Sentinela - Malu Fontes
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Diante da notícia de que mais de quatro milhões de estudantes de todo o Brasil seriam prejudicados e impedidos de realizar, no último final de semana, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), pelo fato de as provas terem sido vazadas, o raciocínio do telespectador e do leitor de informação tendia a ser óbvia: ladrões certamente muito bem informados, articulados, de posse de informações estratégicas e privilegiadas teriam conseguido furar o bloqueio de um esquema de segurança poderoso do Ministério da Educação nos locais de processamento das provas para conseguir surrupiar material tão valioso. O roubo provocou uma bola de neve na agenda não só dos 4,1 milhões de estudantes e suas famílias, mas principalmente no calendário de vestibulares de todas as universidades do país, sobretudo as públicas, uma vez que falar em vestibular quando associado a boa parte das faculdades privadas tende a soar hoje como piada.

No entanto, com o avanço das investigações policiais e da cobertura massiva do caso pela imprensa, o que se viu foram revelações inacreditáveis de tão toscas e primárias acerca do cenário e da modalidade da ação dos criminosos. No lugar de ladrões espertos e articulados que tentaram ganhar 500 mil reais vendendo as provas a jornalistas do jornal O Estado de S. Paulo, apareceram três patetas mais para ladrões de galinhas, tão limitados quanto uma porta. Para roubar a prova mais importante do país só precisaram enfiar umas folhas de papel na cueca e outras embaixo de um casaco, enquanto trabalhavam no espaço da gráfica onde eram impressas as provas. Saíram pela porta da frente tranquilamente.

CUECA - De tão limitados, tiveram a brilhante idéia de vender o produto do roubo justamente a raposas, jornalistas de um dos principais jornais do país, com quem pensavam que fariam a negociação da vida com sua galinha de ovos de ouro sob a forma de papel. A iniciativa dos trapalhões causou um prejuízo de mais de 34 milhões aos cofres públicos, pois todo o processo terá que ser refeito do zero. As imagens das câmeras que registraram o roubo, divulgadas nos telejornais da última terça-feira deixaram claro que, para fraudar um exame nacional de tamanha dimensão, não foram nem seriam necessários não mais que ladrões de galinhas de métodos mais que simplórios.

Não são os fraudadores que são espertos. A logística de segurança do processo é que era vergonhosa, permitindo toda a sorte de promiscuidade de circulação e troca de funções no local da impressão entre seguranças, faxineiros e que tais, todos com jeitão de contratados de véspera, na esquina, sem critério algum. Para fechar o caso com a marca da seriedade que caracteriza o comportamento nacional, a informação mais importante: nenhum dos cindo indiciados pelo roubo foi ou será preso.

Segundo o delegado responsável pelo caso, todos responderão a processo em liberdade, pois não é caso de prisão. Ah, não? Então, tá. Tudo não passou, portanto, de um grupelho de amadores querendo ganhar meio milhão fácil, mas logo se contentando com 10 mil, o valor cobrado ao ameaçar de morte a repórter do Estadão. O Brasil é muito esquisito quando o tema é prisão. Veja-se o caso envolvendo o pugilista Popó. Todos os acusados do crime foram soltos e a vítima foi presa, supostamente por ter contas do passado a acertar com a Justiça. Uma obra prima de ficção, onde até o nome de um dos policiais acusados pela vítima tem nome de tragicomédia que só a Bahia saberia produzir: Hamlet Robson Magalhães.

ABERRAÇÃO LOCAL - Na TV local, a nota máxima da dissonância e da decadência moral, ética e estética se materializou na tela em uma entrevista inclassificável exibida no programa Que Venha o Povo (TV Aratu), na edição de terça-feira. A repórter Analice Sales cometeu um dos maiores pecados já vistos no telejornalismo, na falta de uma palavra mais adequada para nominar o gênero televisivo que hoje se pratica na grade do meio dia. A intrépida repórter entrevistou, como se fosse a coisa natural do mundo, uma criança, uma menina de apenas seis anos de idade, sobre os detalhes sórdidos das abordagens sofridas por ela por parte de um pedófilo.

É inconcebível que uma emissora, uma concessão pública de radiodifusão produza e exiba uma entrevista em que uma jornalista pergunte a uma criança dessa idade qual o nome e o lugar do seu corpo onde o homem introduzia o dedo. Como se fosse pouco, diante da pronúncia titubeante, frágil, intimidada da menina, a repórter repetia reiterando a palavra: ‘na pititica’. Os limites éticos, diante de uma criança tão pequena e em circunstâncias tão abjetas, já podem ser ignorados a esse ponto? Uma coisa é denunciar e divulgar casos de pedofilia, outra, bem diferente, é uma jornalista entrevistar uma criança vítima desse tipo de crime pedindo-lhe detalhes do abuso que sofreu, estimulando-a a reviver o ato de violência sofrido.

Mesmo intramuros, psicólogos e psiquiatras tratam esse tipo de abordagem com todo o cuidado do mundo, pela delicadeza da estrutura psíquica infantil. Aqui, é apenas um ingrediente a mais no show de horrores que alimenta a guerra da audiência televisiva e ficará por isso mesmo. Em nome dessa lógica, há poucos dias foram exibidas, na mesma emissora, cenas nas quais um outro pedófilo, preso, apalpava e reapalva a genitália do repórter, que estimulava a continuidade, apostando nos dividendos da audiência. E viva o interesse público de informações desse quilate, pois.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
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