segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Lenine e a psicanálise freudiana


Letra da música Olho de Peixe é objeto de análise

Estréia: À Flor da Pele por Denise Lima*

Não assumo posição de que a psicanálise possa interpretar tudo, em especial a arte, em qualquer de suas manifestações ou linguagens.


Cabe, portanto, uma advertência: não se trata de recorrer à psicanálise para interpretar objetos que são estudados em outros campos do conhecimento. Trata-se, sim, de trazer à luz, a partir da teoria psicanalítica, novas questões que se propõem em forma de diálogo, que pode resultar em grande proveito para tais campos de conhecimento, numa perspectiva inter ou multidisciplinar - característica do pensamento complexo.


Não se trata, também, de justapor interpretações para melhor compreender um determinado objeto, mas de estabelecer uma relação entre elas, mantendo suas próprias identidades, construídas ao longo da história do campo a que pertencem, respeitando-se as características de irredutibilidade de cada uma, ainda que – diante do objeto complexo[1] – possa haver uma fusão (indefinição) em suas fronteiras. Esta relação - que inclui, também, a contestação, que caracteriza o diálogo – pode levar a novas interpretações e construções do objeto, como também, eventualmente, a transformá-lo.

Dito isto, vamos tentar um diálogo entre a visão psicanalítica freudiana e a letra de Lenine, em sua música Olho de Peixe. (Apenas para não deixar passar esta ocasião para lembrar uma questão, exaustivamente debatida: letra de música pode ser poesia? Dizia Wally Salomão que sim, o que provocou muita polêmica. Deixando à parte, poesia ou não, podemos pensar que qualquer produção humana deve ser levada em consideração).

No que a psicanálise pode contribuir para elucidar sentidos nesta letra de música, a partir das contribuições desta para dar-nos pistas para a compreensão do psiquismo humano?

Redoma de vidro é o que, primeiramente, chama atenção. Redoma dá uma idéia do campo defensivo do sujeito, que nada sabe sobre si mesmo e se protege por meio de uma ficção (ou racionalização), que pouco corresponde à sua própria verdade. Pode representar as defesas – inclusive a repressão (ou recalque) - do Eu, parte consciente, grande parte inconsciente.

Apesar de o Eu ser um lugar da ilusão e da mentira, ainda assim, não podemos perder de vista que é com o esse eu que pensamos, raciocinamos, refletimos, tomamos decisões, construímos e fazemos escolhas éticas. Sem falar no poder que temos, consciente e determinado, de superar nossas próprias dificuldades.

Redoma de vidro é uma expressão bonita e significativa: a defesa, a proteção, podem ser quebradas. É o que acontece com o retorno do reprimido (ou recalcado), em forma de sintomas, sonhos, atos falhos, chistes – que são manifestações do inconsciente.
Pulo para “a mente é como um baú e o homem decide o que nele guardar”.

Não decide. Não há escolha sobre o que guardar ou não, assim como não há escolha da orientação sexual. Lembremos Monod, em Acaso e necessidade, quando diz que o homem tenta, desesperadamente, negar a contingência!

Se o homem decide o que guardar em seu baú, talvez isso se refira às lembranças conscientes que ficam preservadas, as quais fazem parte da ficção que faz sobre si mesmo. Sem esquecer que as lembranças são sempre encobridoras, dizia-nos Freud. Fala Lenine: “ele se permite esquecer de lembrar”. É isso mesmo: por que se permite – inconscientemente – esquecer de lembrar, repete. Repete situações, padrões, amores, para não se lembrar. A possibilidade de ruptura dessa cadeia – tratada em Recordar, repetir e elaborar, texto de Freud de 1914 – inaugura a capacidade de invenção, de novas construções.

Dou um pulo: “na cabeça do homem tem um porão, onde moram o instinto e a repressão”. Porão é a parte de baixo. É o que vem primeiro, e, de certa forma, o que sustenta a construção do edifício. Interessante metáfora usada por Lenine! Pois o que vem primeiro, de certa forma, são as pulsões (instintos) de vida (pulsões do Eu – autoconservação - e sexuais – preservação da espécie) e de morte – destrutividade humana. Lá, no porão, não mora a repressão, mas esta é a condição de possibilidade do porão, onde moram os instintos. Repressão dos instintos (pulsões) para que a civilização seja possível (Freud, Norbert Elias etc.).

A pergunta insistente de Lenine: o que tem no sótão? O sótão é a parte superior do edifício – para usar a metáfora espacial - onde se guardam coisas, muitas vezes esquecidas e sem uso. Se guardadas é porque possuem uma potencialidade (no sentido dado por Nietzsche), ainda que encobridoras. Mas já é uma pista que Sherlock Holmes não desprezaria.

Arrisco dizer que o sótão pode ser uma metáfora para representar o instinto (pulsão) não reprimido, mas sublimado, um dos destinos possíveis das pulsões. Ou seja, a capacidade humana de não se render às pulsões (tanto as sexuais, de vida, quanto às de morte), que torna possível, ainda que tenha que se valer delas, a produção de uma música como esta de Lenine.
Grande idéia esta de provocar convergências entre a psicanálise e a letra desta música! Espero ter demonstrado, neste curto artigo, a possibilidade de diálogo que propus fazer, de modo incipiente.

Perdoem-me as frases que não comentei, talvez mais importantes do que as que selecionei. Outras abordagens farão isso, espero. “O capuz negro que cega o falcão selvagem”, por exemplo. Forte essa frase. Dá-nos o que pensar! O capuz negro, tarja preta. Podemos relacioná-lo tanto à censura quanto ao luto. Também ao anonimato. A censura, o luto e anonimato têm algo em comum: algo que se perde.

Talvez possamos remetê-lo (capuz negro) a um dos conceitos fundamentais da psicanálise: a defesa que usamos, totalmente inconsciente, com o fim de não enxergarmos o falcão selvagem que existe em todos nós. Se o falcão selvagem deve ser “domado” para que exista Cultura, parte deste selvagem, no que se refere à pulsão de morte, pode significar uma boa defesa! Se dirigida à pulsão de vida, esse falcão selvagem deve ser a força criadora, inventiva, persistente, louca, aquela que promove a Arte, a Ciência e a Filosofia.

Mais uma coisa a se pensar: a pulsão de vida e a de morte funcionam acopladas...

[1] Objeto complexo diz respeito à Teoria da complexidade (Morin, Prigogine) que está sendo adotada como novo paradigma epistemológico para a delimitação do campo da ciência.

*Denise Maria de Oliveira Lima é Psicanalista, Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais e em Psicologia; Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e Doutora em Ciências Sociais (UFBA). Professora da Faculdade Social da Bahia, onde leciona Psicanálise I e II. E é colunista do Sentinelas da Liberdade.

Notícias do Inferno

Teleanálise
Sentinela - Malu Fontes*
No rastro deixado pela onda de violência extrema que varre a zona norte do Rio de Janeiro, nunca a televisão abordou tanto um tema que hoje é dos mais assustadores da realidade brasileira: o tráfico de drogas. Incluiu-se no agendamento os tentáculos e os fenômenos satélites do tráfico, como o comércio internacional de armas, a contribuição militar nas fronteiras, a corrupção policial em torno do fenômeno e, como não poderia deixar de ser, o ponto nevrálgico do assunto: o consumidor.

Como a imprensa brasileira não é muito dada a abordar sem pudor o consumo social e esporádico de drogas pesadas, como a cocaína, até porque esse universo, muitas vezes, está literalmente embaixo do seu próprio nariz, nada mais apropriado e chocante que trazer à tona o que todo mundo já sabia mas nunca se tinha dito com tamanha clareza: a virulência com que o crack já se alastrou pelas mais diversas classes sociais no país, escapulindo das fronteiras da dependência e tornando-se um dos mais inabordáveis desafios para as famílias, as políticas de assistência à saúde e a segurança pública.

CELA - Para ilustrar à perfeição o tumor intratável em que o consumo do crack se tornou nos últimos 10 anos, um rapaz de 26 anos, sob o efeito da droga, assassinou no final de semana a namorada na zona sul do Rio, pelo simples fato de esta tentar demovê-lo do vício. E haja notícias produzidas diretamente do inferno das cracolândias domésticas país afora. Viu-se nos telejornais uma mãe em Aracaju que entregou os filhos de 10 e 14 anos ao Ministério Público por não mais saber o que fazer com ambos, dependentes. Em Pelotas (RS), uma família construiu dentro de casa uma cela para o filho descontrolado, com o afeto e o humor desmodulados a ponto de representar risco para toda a família e quem mais dele se aproxime.

Já que ninguém além dos traficantes genéricos é diretamente responsabilizado pelo tráfico e o único usuário abordável sem tabus é o dependente químico já no grau máximo (jamais se condena os bacanas que usam de ‘um tudo’), a batata quente teria que ser atirada na mão de algum órgão burocrático ou seu representante. A escolha se deu: em todos os telejornais, em dois tempos, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e o coordenador do Ministério da Área de Saúde Mental, Pedro Gabriel Delgado, passaram a semana virando-se nos trinta para explicar porque a pasta não tem estratégias e protocolos específicos para atender à demanda das famílias que têm em casa dependentes de crack que lhes ameaçam e à sociedade.

TÊNIS - Os críticos das políticas públicas de saúde mental passaram a semana acusando na TV o Ministério da Saúde de amaldiçoar a psiquiatria, a medicalização, a internação e de atirar à família a responsabilidade total por todo e qualquer transtorno de comportamento do usuário sistêmico de drogas. O Jornal Nacional abordou com destaque a proibição da internação involuntária dos dependentes químicos. Ou seja, se a internação se der sem o desejo do próprio dependente de crack, por exemplo, tem-se não uma internação, mas um indivíduo submetido a cárcere privado, o que é crime, passível de punição à família.

Santa hipocrisia nacional. A proibição da internação involuntária só atende mesmo à omissão da rede pública, incapaz que é de enfrentar o fato de que a população brasileira está atolada em índices dantescos de dependência de drogas. Somente as famílias privilegiadas e que infringem clandestinamente o voluntarismo do tratamento podem recorrer a sistemas privados de tratamento, sempre muito caros, pela complexidade e multidisciplinaridade do processo. Enquanto isso, os ricos entorpecidos de crack matam seus entes queridos em seus ambientes domésticos e os pobres saem insanos pelas ruas matando por um tênis e um casaco que logo adiante serão roubados por policiais corruptos que não querem nem saber quem pariu Mateus, muito menos quem o matou.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
maluzes@gmail.com
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