segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Notícias do Inferno

Teleanálise
Sentinela - Malu Fontes*
No rastro deixado pela onda de violência extrema que varre a zona norte do Rio de Janeiro, nunca a televisão abordou tanto um tema que hoje é dos mais assustadores da realidade brasileira: o tráfico de drogas. Incluiu-se no agendamento os tentáculos e os fenômenos satélites do tráfico, como o comércio internacional de armas, a contribuição militar nas fronteiras, a corrupção policial em torno do fenômeno e, como não poderia deixar de ser, o ponto nevrálgico do assunto: o consumidor.

Como a imprensa brasileira não é muito dada a abordar sem pudor o consumo social e esporádico de drogas pesadas, como a cocaína, até porque esse universo, muitas vezes, está literalmente embaixo do seu próprio nariz, nada mais apropriado e chocante que trazer à tona o que todo mundo já sabia mas nunca se tinha dito com tamanha clareza: a virulência com que o crack já se alastrou pelas mais diversas classes sociais no país, escapulindo das fronteiras da dependência e tornando-se um dos mais inabordáveis desafios para as famílias, as políticas de assistência à saúde e a segurança pública.

CELA - Para ilustrar à perfeição o tumor intratável em que o consumo do crack se tornou nos últimos 10 anos, um rapaz de 26 anos, sob o efeito da droga, assassinou no final de semana a namorada na zona sul do Rio, pelo simples fato de esta tentar demovê-lo do vício. E haja notícias produzidas diretamente do inferno das cracolândias domésticas país afora. Viu-se nos telejornais uma mãe em Aracaju que entregou os filhos de 10 e 14 anos ao Ministério Público por não mais saber o que fazer com ambos, dependentes. Em Pelotas (RS), uma família construiu dentro de casa uma cela para o filho descontrolado, com o afeto e o humor desmodulados a ponto de representar risco para toda a família e quem mais dele se aproxime.

Já que ninguém além dos traficantes genéricos é diretamente responsabilizado pelo tráfico e o único usuário abordável sem tabus é o dependente químico já no grau máximo (jamais se condena os bacanas que usam de ‘um tudo’), a batata quente teria que ser atirada na mão de algum órgão burocrático ou seu representante. A escolha se deu: em todos os telejornais, em dois tempos, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e o coordenador do Ministério da Área de Saúde Mental, Pedro Gabriel Delgado, passaram a semana virando-se nos trinta para explicar porque a pasta não tem estratégias e protocolos específicos para atender à demanda das famílias que têm em casa dependentes de crack que lhes ameaçam e à sociedade.

TÊNIS - Os críticos das políticas públicas de saúde mental passaram a semana acusando na TV o Ministério da Saúde de amaldiçoar a psiquiatria, a medicalização, a internação e de atirar à família a responsabilidade total por todo e qualquer transtorno de comportamento do usuário sistêmico de drogas. O Jornal Nacional abordou com destaque a proibição da internação involuntária dos dependentes químicos. Ou seja, se a internação se der sem o desejo do próprio dependente de crack, por exemplo, tem-se não uma internação, mas um indivíduo submetido a cárcere privado, o que é crime, passível de punição à família.

Santa hipocrisia nacional. A proibição da internação involuntária só atende mesmo à omissão da rede pública, incapaz que é de enfrentar o fato de que a população brasileira está atolada em índices dantescos de dependência de drogas. Somente as famílias privilegiadas e que infringem clandestinamente o voluntarismo do tratamento podem recorrer a sistemas privados de tratamento, sempre muito caros, pela complexidade e multidisciplinaridade do processo. Enquanto isso, os ricos entorpecidos de crack matam seus entes queridos em seus ambientes domésticos e os pobres saem insanos pelas ruas matando por um tênis e um casaco que logo adiante serão roubados por policiais corruptos que não querem nem saber quem pariu Mateus, muito menos quem o matou.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
maluzes@gmail.com

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