domingo, 13 de setembro de 2009

Yes, We Can

TELEANÁLISE

Sentinela - Malu Fontes*

Sim, nós podemos. Podemos, aqui, promover e assistir barbáries iguaizinhas às das grandes metrópoles. Como se espera do caos quando o ordenamento social não contempla as demandas que explodem aqui e acolá, as cenas que há duas semanas impuseram-se nas ruas de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, ganharam versão local desde o fim de semana, em bairros da periferia e do centro de Salvador. Ônibus queimados, módulos policiais bombardeados e policiais atacados foram o contraponto dissonante para a Bahia festeira que já começava a sacolejar-se sob o som dos tambores do Olodum e da animação de Galvão Bueno diante da presença da seleção brasileira de futebol na cidade.

O roteiro das cenas daqui parece ter pontos ainda mais negativos. Afinal, os incêndios e quebra-quebras paulistanos alegavam como motivo o assassinato real, pela Polícia, de uma estudante inocente, que deixou órfã uma filha. Aqui, o motivo, real ou não (dificilmente se saberá), teria sido a transferência de um traficante de uma prisão de Salvador para um presídio federal de segurança máxima, no Mato Grosso do Sul. A Secretaria de Segurança Pública anunciou imediatamente que a ação criminosa era uma manifestação dos bandidos reagindo à eficiência e ao combate da Polícia ao tráfico. As imagens de um cobrador de ônibus com os braços completamente queimados são, no entanto, difíceis de serem digeridas como tradução de qualquer forma de eficiência.

MALAS - Mas, enquanto as imagens e manchetes dos jornais impressos de Salvador exibiam cenários do inferno, acessíveis na Internet desde as primeiras horas da manhã de terça-feira, o telejornal de maior audiência da cidade, quem sabe numa tentativa de adotar a filosofia de não falar logo da morte do gato, mas da subida ao telhado, abriu sua edição com um tipo de informação sem a qual o telespectador que gosta de informação não poderia viver. A notícia de abertura do Jornal da Manhã (TV Bahia/Globo) foi nada menos que as centenas de pessoas de caras amassadas, despenteadas e sonolentas que desembarcavam na Rodoviária após o feriado.

Ante a comparação entre a relevância das manchetes disponíveis na Internet e a da interminavelmente longa matéria na TV sobre o retorno do feriado, o telespectador não poderia se furtar a uma pergunta impossível de ser respondida com os substantivos e adjetivos que merece: o que vai pela cabeça de um profissional de comunicação, responsável pela pauta do primeiro telejornal do dia da emissora de maior audiência da terceira capital do país, quando, numa cidade em clima de convulsão social, exporta uma repórter para a Rodoviária para ouvir trocentas pessoas que não têm nada a dizer sobre coisa alguma? Em determinado ponto das entrevistas, todas feitas à queima-roupa, quando o povo descia dos ônibus, configurou-se ainda mais nítido o pesadelo telejornalístico matinal oco. A repórter queria porque queria saber por que as pessoas desembarcavam com ‘tantas malas de uma viagem de apenas três dias’.

GALOS - Como o dia não estava mesmo para acerto profissional, o azar predominou nas entrevistas. Nove entre 10 dos entrevistados encurralados com câmera, luz, microfone, e até a mão da repórter, não estavam retornando de feriado algum. Havia quem vinha a Salvador para o jogo do Brasil e o mais comum e que só a TV não sabe: inúmeras pessoas que, sem estrutura de assistência médica em seus municípios, vêm para a capital de ônibus em busca de tratamento médico eletivo. O ministro Gilmar Mendes, se tiver pensado, além do cozinheiro, do açougueiro e outros eiros, em exemplos jornalísticos desse quilate, talvez tenha sido sensato quando julgou por bem atirar o diploma de jornalista na lata do lixo. Pior que isso, só mesmo ganhar a vida profissional como jornalista estimulando brigas estúpidas de vizinhos pobres em quadros de telejornais populares. Ou alguém é cara de pau o suficiente para justificar como o argumento do interesse público a transmissão televisiva quase cotidiana de briga de vizinhos de periferia? Por que não vão aos edifícios de luxo da Vitória, do Horto, do Itaigara e bairros afins fazer matérias sobre os barracos causados por madames e senhores que não pagam o condomínio há anos ou ignoram vazamentos sobre o apartamento de baixo? Considerando-se a viralatice desse tipo de jornalismo, não passariam sequer perto dos portões de entrada. Mostrar marias das couves desdentadas e descabeladas brigando no quintal é coisa bem pior que colocar cachorros ou galos de briga para se estropiarem. E não custa lembrar que, por promover briga de galo, o premiado, poderoso e milionário Duda Mendonça acabou preso. E para quem promove briga de desdentadas, nada?

Yes, we can. Podemos, em Salvador, afundar mais na lama, tanto vendo surtos de convulsão social, supostamente promovidos pelo banditismo por causa de um traficante grandão exportado para a cadeia de outro estado, como nos assombrar vendo, em um dia absurdamente incomum para a rotina social da cidade, que os pauteiros da principal emissora de TV consideram que o telespectador tenha interesse em saber que diabos uma senhorinha que cruza o estado em busca de uma consulta médica tanto carrega em sua malinha.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 13 de Setembro de 2009. maluzes@gmail.com

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