domingo, 20 de setembro de 2009

O que faz você feliz?

TELEANÁLISE

Sentinelas - Malu Fontes*


A indústria do bem está com tudo e não está prosa, cada vez mais poderosa. Quanto maior o caos do mundo, melhor para aqueles que lucram com a venda e a promoção do bem coletivo, principalmente o bem dos vulneráveis, pobres e oprimidos. Por conta da indústria do bem, o telespectador e, mais ainda, o leitor de revistas, é submetido ininterruptamente a uma profusão de anúncios deslumbrantes anunciando determinadas marcas como sendo as mais novas velhas amiguinhas da natureza.

Um exemplo são os xampus, óleos e cremes elaborados com castanhas do Pará colhidas e tratadinhas a pão de ló por mulheres que, conforme se anuncia, antes eram pobrezinhas e agora estão empoderadas em alguma comunidade tão longínqua quanto carente na Amazônia. A propósito, Ana Maria Braga daria uma excelente senhora-propaganda desse tipo de produto. É facílimo imaginá-la elogiando os produtos puríssimos, feitos, como ela bem diria, exclusivamente com elementos da ‘fauna’ brasileira.

HIPOCRISIA - Vá lá que as marcas que hoje ancoram suas imagens em estratégias política e ecologicamente corretas mudem mesmo a vida dessas mulheres e a de seus rebentos, que contribuam mesmo para preservar a floresta, de algum modo. No entanto, a mudança maior se dá, de fato e para valer, é em suas caixas registradoras. O que mais importa para as marcas, longe de ser a floresta e seus povos, as mulheres pobrinhas do Vale do Jequitinhonha (MG) e seus bordados e artesanatos deslumbrantes, é o fato de que xampus, sabonetes, cremes, perfumes, roupas e sapatos de grifes tais possam vender juntamente com o seu valor de uso a imagem ‘agregada’ de marca correta, promotora do bem, redimensionadora da vida de gente pobre, protetora da natureza e comprometida com a sustentabilidade e o futuro do planeta.

Se a vida da catadora de castanha do Pará muda, muda muito mais o preço final do xampu elaborado com os elementos da natureza. O uso da flora de modo sustentável e a mão de obra dos nativos são justamente o diferencial que autoriza as marcas a cobrarem o dobro ou o triplo do preço por seus produtos. Já a consumidora, paga a conta, mesmo mais alta, feliz da vida, achando o valor justíssimo, seduzida que está pela idéia de estar comprando mais do que uma espuma para o cabelo, mas uma causa, um movimento e uma atitude por um mundo melhor. O discurso é lindo, mas imagens incontestáveis e a hipocrisia exacerbada.

SOCIALITES - Nas páginas das revistas de luxo aparecem designers, estilistas e celebridades exibindo vestidos caríssimos elaborados com elementos artesanais feitos por donas marias do Piauí, de Alagoas, do Ceará, mas assinados por criadores com lojas nos Jardins, em São Paulo, o pedaço de rua fashion mais sofisticado do Brasil e outras vitrines laureadas do resto do país e até do mundo. E quem disse que leitor de revista de moda de primeira linha vai lá perder tempo estabelecendo relações, mesmo imaginárias, entre o custo de um daqueles vestidos deslumbrantes de renda renascença/renascense como os usados por Daniela Mercury, por exemplo, e o quanto as bordadeiras que passaram meses tecendo aquelas tramas receberam por seu trabalho?

Do mesmo modo que a indústria do bem tornou-se um tema caro à indústria literal, o mesmo também ocorre com celebridades, socialites e dramaturgos da TV. Novelista que se preze, sobretudo os do novelão global das oito, tem que ter uma causa do bem. Que o diga Manoel Carlos, cuja trama, estreada esta semana, traz ao fim de cada capítulo um depoimento de superação com final feliz. Mas, dá para levar a sério a tematização de questões sociais complexas em telenovelas?

BANHEIRO - Cada vez que um autor diz que vai discutir tal assunto em suas narrativas, pouco se vê de seriedade. Um dado para reflexão foi a inserção versus repercussão e intervenção nos modos de abordagem da esquizofrenia, através do personagem Tarso (Bruno Gagliasso) em Caminho das Índias, encerrada na semana passada. A impressão que ficou foi a de que a tematização da doença rendeu muito pouco em termos e mudança de perspectiva da sociedade em relação aos portadores. O banho de água fria na causa foi dado, talvez, pela roubada de cena por parte da personagem Norminha (Dira Paes), a traidora contumaz. Ao invés de se falar em esquizofrenia e de como enfrentá-la, a verdade é que se falou muito mais da performance do ator, do quanto Norminha tornou-se a queridinha nacional e das especulações acerca de quem deveria ficar com Maya no final.

E por falar da indústria do bem e da publicidade em torno dela, que vive a responder à pergunta ‘o que faz você feliz?’, é um mimo ouvir, nos intervalos comerciais televisivos, um dos maiores artistas do Brasil, Gilberto Gil, falando de maneira tão terna, quase num tom de ninar, que o que ‘faz você feliz’ é nada menos do que comprar em uma rede tal de supermercados. A delicadeza da fala do ex-ministro da Cultural é de marejar os olhos dos desavisados. Na vida de verdade, no entanto, se o telespectador de Salvador embarcar no mantra da felicidade de supermercado e der uma passadinha na loja do grupo na Avenida Paralela, é bom passar longe dos banheiros do estabelecimento. Se o fizer, vai despertar da felicidade sugerida pela fala mansa do ministro e descobrir-se num pesadelo odorífico inenarrável.



*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 20 de Setembro de 2009. maluzes@gmail.com

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