segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Impunidade, igualdade e fraternidade.






Passados alguns elásticos dias pré-carnavalescos
do fim da insurreição da polícia militar da Bahia, dias propícios à orgia e ao esquecimento, sem que a notícia de punição alguma tenha sido anunciada e aplicada aos marginais fardados, que subverteram a ordem pública, seqüestraram ônibus, coagiram cidadãos com arma em punho e interditaram avenidas, atirando para o céu, num atentado contra o senhor direito de ir e vir das pessoas, e mais alguns outros crimes de morte, saque e assalto divulgados pela imprensa, podemos ao menos tirar uma importante comprovação desse triste e grave episódio, que é a nua e crua constatação de que ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Somos todos iguais.

Desde criança tenho uma acentuada e indisfarçável predileção pelos desvalidos.  Para a preocupação de meus pais, ofereci, entre outros motivos, o fato de ter entre os mendigos e os favelados os meus melhores e mais queridos amigos, com quem eu partilhava, sem dolo e sem culpa, o excesso dos bens materiais e da pequena renda que me cabiam.

Mais velho, já cursando a faculdade, essa predileção se acentuou, quando a legião de miseráveis e desvalidos recebeu um reforço numérico incalculável, patrocinado pelos donos da ditadura militar, ao ponto de um famoso astro internacional da música ficar tão impressionado com a minha intimidade com os mendigos e moradores de rua - nós nos abraçávamos e nos chamávamos pelo nome - que o seu disco, nascido dos 20 dias de nossa frutífera convivência, chama-se O banquete dos mendigos, cuja música mais conhecida desse disco é Sympathy for the devil.

Com a prática budista não religiosa que me leva pelo caminho no universo material, aprendi a fechar os olhos quando abraço alguém que eu amo. Com isso, posso sentir melhor o abraço e tão profundamente, ao ponto de me ver transformar no abraço que eu dou.

Um dia desses, abraçava Cristina, uma querida, linda e elegante senhora moradora de rua, que nesse dia estava um pouco mais suja e com o seu perfume da sarjeta mais acentuado, quando tive um em impulso de abrir os olhos e ver o quanto é ridícula a expressão do horror e nojo das pessoas normais em nossa volta, uma vez que depois daquele lindo abraço que nós fomos, eu voltei a ser eu e ela voltou a ser ela.

Agora vejo como é também ridícula a expressão da nossa repulsa diante do episódio dos crimes e da impunidade de um bando de marginais fardados, porque nós todos vimos nesse episódio e com bastante clareza que:

1.    Alguns policiais a quem empregamos, remuneramos mal e os armamos com a missão de zelar pela nossa segurança, não são nem um pouco melhores nem piores do que um bando de traficantes armados, que aterrorizam as favelas do país;

2.    Os governantes e os parlamentares, que elegemos e os remuneramos regiamente para nos garantir a ordem e o progresso, palavras inutilmente escritas na nossa bandeira, mas que se atolam na lama fétida da corrupção e da impunidade, não são nem um pouco melhores nem piores do que um bando de porcos chafurdando a lama asquerosa do seu alimento, para encher o próprio bucho;

3.    Os possuidores do Brasil, esses eternos capachos do colonialismo, deplorável gente predadora do meio ambiente e dos recursos naturais, que nada inventa e nada cria, além da sombria arquitetura e obscura construção do nosso triste quadro social, não são melhores nem piores do que a legião dos explorados possuídos, que dispondo apenas de recursos para sobreviver, criam uma das mais belas e vigorosas arte popular do mundo;

4.    E que nós mesmos, com a nossa ancestral indiferença à vida, não somos nem um pouco melhores nem piores do que um bando de carneirinhos conformados, caminhando passivamente para o abatedouro.

Assim, em uma merecida homenagem à coerência, vamos combinar que onde se lê ordem e progresso sobre o lábaro estrelado ostentado pela nossa bandeira, veja-se escrito impunidade, igualdade e fraternidade, porque ninguém mais duvida que todos nós somos irmãos, iguais como inimigos e unidos como os animais.


*Luiz Eladio Humbert 
ou apenas Lalado, 64, soteropolitano, é jornalista desde quando caiu a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão. Bacharel em Direito e pós-graduado em Direito Tributário pela UFBA e formado em Administração de Empresas pela Universidade Mackenzie de São Paulo. Jubilado do Curso de História da UFBA, Autor de “Amarelo de Fome, Verde de Medo”, “As Candíadas”, “O Caminho da Casa da Aranha”, “Grito para Wall Street”, “Paulus”, “Cartas Impublicáveis”, todos eles proibidos, vetados ou censurados, tanto pela repressão da ditadura, quanto pela política cultural dos regimes neo-liberais elitistas ou populistas. Ajudou a criar as comunidades musicais Francisco Julião, Antonio Conselheiro, Navio Negreiro e Grampo e a comunidade de praticantes budistas da Casa da Aranha.

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