domingo, 18 de outubro de 2009

Viver a vida em círculos

Teleanálise
Sentinela - Malu Fontes*
Há cerca de um mês no ar, é fato que ‘Viver a Vida’, o novelão das nove da vez, sob a responsabilidade de ‘Maneco’, como os telenoveleiros ditos descolados preferem chamar o novelista Manoel Carlos, ainda não disse a que veio. Sem uma estrutura dramática mínima, mesmo que multifacetada em diversos núcleos, como é a marca registrada do autor, Viver a Vida tem chamado mais atenção por suas características extrínsecas à trama do que por suas qualidades dramatúrgicas. Se o aferidor de qualidade da novela for a quantidade de pautas e teminhas descartáveis que ela consegue agendar na imprensa cor de rosa, então é um sucesso.

Onze entre 10 revistas de moda e de fofocas e suas versões televisivas ressaltam dia sim e outro também a elevação do crespo que caracteriza os cabelos de Thaís Araújo à condição de proposta fashion e de novo hit das cabeças femininas. Mesmo que de natural o cabelo da heroína tenha pouco ou quase nada, resultado que é de um aplique chiquérrimo produzido por cabeleireiros hypados do Leblon e do Projac. Além de ser objeto de notícia pela beleza dos seus cachinhos volumosos, Thaís também é citada como a primeira protagonista negra do horário nobre em onze a cada 10 textos desses que ninguém perde nada não lendo. Anuncia-se o fato com tons de conquista a ser celebrada pelos movimentos afirmativos dos negros.

PEGADOR - O outro e definitivo índice de falação em torno da novela, também completamente à margem da trama em si, é, pela enésima vez, a enxurrada de referências ao galã José Mayer. As façanhas eróticas encarnadas pelo ator a cada personagem que interpreta já são tão lendárias que até mesmo aqui, em Salvador, jornais impressos lhe dedicam a primeira página, com direito a torso nu e texto improvável: José Mayer, o pegador. O modo como o ator é trombeteado é a cara do machismo brasileiro. Enquanto Norminha (personagem de Dira Paes na novela anterior) foi elevada à condição de galinha nacional, Mayer é o elogiável pegador, num texto claríssimo para quem ainda tem dúvidas sobre a predominância da assimetria moral incrustada nos processos de adjetivação aplicados a homens e mulheres colecionadores de parceiros de cama.

À novela, falta um eixo axial, mesmo para as múltiplas histórias que o autor gosta de contar simultaneamente. O cotidiano dos personagens, um tema caro a Manuel Carlos, é mal roteirizado, um xabu sem comparado à maestria do roteiro da série ‘Tudo Novo de Novo’, por exemplo, cuja temática também era o cotidiano familiar da classe média. Em Viver a Vida, neste primeiro mês, tudo fica andando em círculos, ao sabor de personagens superficiais, incapazes de dar consistência e de, consequentemente, estimular o interesse do telespectador pelo desdobramento da narrativa.

A idéia de retornar aos depoimentos pessoais ao final de cada capítulo foi a primeira vítima da novela, pois a impressão é a de que, por ser uma repetição de um recurso utilizado em Mulheres Apaixonadas, a fórmula se exauriu. E, é bom que se diga, nem toda história com um componente trágico ou triste termina com os envolvidos embalados naquele grau de contentamento e aceitação. Muitos dos relatos felizes soam a artifício melodramático para a Globo filmar. Entre quatro paredes, muitos daqueles dramas devem ter cores muito menos alegres. Ligue uma câmera de TV diante de uma pessoa e veja o seu (do instrumento) poder de transformação.

TARTARUGAS INDIANAS - Como dentro da novela a xaropada dominante reina dia após dia, com personagens indo e vindo sem parar e sem rumo na trilha repetitiva Leblon-Búzios, a emissora e os autores devem mesmo comemorar se um dia sim e outro também os assuntinhos periféricos paralelos à trama ganharem visibilidade no repertório de quem não suporta o real, mas não vive sem uma Contigo! ao alcance de mão. Na falta de uma polêmica grandona, já surgiu uma literalmente pequenininha. Os politicamente corretos de plantão, sempre risíveis e incapazes que são de dar um jeito na realidade hostil do mundo, não perdem uma chance de levar a ficção para os tribunais. A bola da vez, ou melhor, a bolinha, é a presença em cena de uma garotinha, a atriz mirim Klara Castanho, que interpreta Rafaela, a filha espevitada da personagem Dora (Giovanna Antonelli).

Como se toda criança fosse boazinha, comportada, dócil e as pestinhas infantis só existissem em filmes de terror, não é que a moralidade brasileira achou por bem entender que a personagem é uma vilã? A personagem é uma criança espevitada e de língua afiada, como trocentas existentes do lado de fora da tela, tanto nas piores quanto nas melhores famílias. A patrulha quer que o autor transforme a menina de mentira em uma santa, nessa fantasia doida de quem não consegue intervir na ordem das coisas reais e desloca a potência de correção do mundo para obras de ficção descartáveis.

Não custa e, nessa sanha de correção, vão matar a pobre da Rafaela na trama ou lobotomizá-la, tornando-a uma criança exemplar de laboratório. Para quem acha que Rafaela representa um atentado ao comportamento infantil, um mau exemplo, por encarnar a inventada vilanização da criança, não custa dar uma espiada nos exemplos das crianças nominadas de novos talentos e prodígio pela televisão local. O que pode ser mais deseducativo do que uma criança recoberta de Maia (personagem de Juliana Paes na última novela das nove), encenando coreografias indianas com movimentos de pescoço inspirados naquelas tartaruguinhas artesanais xexelentas que balançam a cabeça ao ritmo do vento nas bancas dos camelôs que as vendem? Crianças prodígio e talentosas? Ah, tá.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 18 de Outubro de 2009. maluzes@gmail.com

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