segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A vida sexual da perereca

Teleanálise

Sentinela - Malu Fontes*

Por mais que um indivíduo de bom senso se esforce, jamais entenderá como funcionam, ou melhor, como não funcionam, determinadas engrenagens burocráticas governamentais brasileiras. Tudo bem que o planeta corre risco, o aquecimento global está aí com suas tragédias, a vida na terra está ameaçada, a água pode acabar, os animais precisam ser protegidos da ação predatória humana e a televisão ensina com uma musiquinha que todo mundo deve fazer xixi durante o banho para salvar o mundo.

Tudo isso o cidadão esclarecido é capaz de entender. Já o mesmo não ocorre quando este mesmo indivíduo se põe a pensar por que raios, mesmo com a reunião de todos os esforços dos governos federais, estaduais e municipais não se consegue não apenas erradicar o analfabetismo no Brasil, como, ao contrário, ele cresce até mesmo em regiões estratégicas, como São Paulo e Brasília. Esse mesmo cidadão é mais incapaz ainda de entender como o poder público, pensado de novo como sinônimo das três esferas, é incapaz de retirar das ruas das grandes cidades o imenso exército de crianças miseráveis que equivalem a um celeiro de vidas sem futuro, condenadas que estão a serem incorporadas aos exércitos urbanos do tráfico e a serem soterrados em cemitérios antes de atingir a maioridade.

A RÃ - Na última semana, houve mais um exemplo de que a crônica da realidade nacional é mesmo impossível de ser apreendida por esse cidadão comum. Esse mesmo indivíduo que verifica todos os dias que o poder público prefere esperar as crianças de rua crescer um tantinho mais para então poder aprisioná-las num centro de recolhimento, numa cadeia ou vê-las morrer no banditismo, leu em todos os jornais e viu em todos os telejornais uma notícia surreal demais da conta para ser compreendida por alguém com os pés fincados no senso comum. Uma rã, uma perereca de no máximo dois centímetros de altura e que atende pelo nome científico de Physalaemus soaresi, rara e em extinção, fez com que uma obra de cerca de um bilhão de dólares fosse interrompida pelo poder público.

A rã foi percebida por operários durante a construção de uma rodovia no Estado do Rio de Janeiro. Está na fase de reprodução, período, no caso de sua espécie, chamado de ‘canto nupcial’, traduzível como fase de cio, e precisa de tranqüilidade para tocar sua vida sexual em paz até nascerem as pererequinhas. Somente assim, depois do sexo e do parto da rã, a rodovia Arco Metropolitano, a mais importante obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) no estado do Rio, será retomada. A obra equivale a 77 quilômetros de pistas que vão ligar o município de Itaboraí ao Porto de Itaguaí, um trecho considerado estratégico para a economia fluminense. A semana começou com um Deus nos acuda em relação ao que se deveria fazer com a obra enquanto a rã curte o seu período de lua de mel e gestação.

ESTUPRO - O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que uma semana antes foi chamado, como xingamento, de ‘viado’ (sic) e ameaçado de estupro em praça pública por ninguém menos que o governador do Mato Grosso do Sul, garantiu que se dará um jeito para tocar a obra sem atrapalhar a vida sexual da perereca. A sugestão de Minc é instalar dois grandes paredões de ferro ao longo dos trechos onde vive a rã. Mas perereca não é dada a pular cercas, mesmo que férreas? Como o brasileiro adora ser engraçadinho, já batizou a rã, que tem tudo para ser a musa do verão carioca: apelidou-a de Norminha, a personagem ninfomaníaca de Dira Paes na recém-acabada Caminho das Índias.

O cidadão comum certamente não tem nada contra todo esse salamaleque adotado para que uma rã possa fazer sexo em paz, mas nem por isso abre mão de assombrar-se com a possibilidade de, ao mesmo tempo em que isso acontece, o poder público não ser capaz de impedir que todos os anos sejam assassinados no Brasil mais de 5.000 adolescentes (sem contar os adultos e os adultos jovens), segundo um levantamento feio pelo próprio Governo e pelo Unicef. Será que não daria mesmo para se fazer um esforço e dispender só um pouco desse cuidado todo dispensado à rã para tentar proteger um pouco mais a infância e juventude brasileiras condenadas antecipadamente às grades ou a covas rasas?

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
maluzes@gmail.com

Um comentário:

  1. Belo artigo, como costumo adorar a maioria dos seus artigos que leio. De fato, nosso país perde muito tempo com assuntos pequenos...Surreal, ainda bem que ainda existem pessoas conscientes no Brasil para criticar casos como esse!

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