domingo, 23 de agosto de 2009

O aborto das galinhas

TELEANÁLISE

Sentinela – Malu Fontes*

A expressão homem gabiru foi bastante usada nos anos 80 no jornalismo e telejornalismo nacional para descrever uma espécie de sub-homens, de sub-raça que estaria emergindo no Nordeste e nos grandes centros urbanos, gerada pela fome e pela subnutrição. O conceito nasceu em Recife, na Fundação Josué de Castro, voltada para pesquisas acerca da fome. Os homens gabirus comiam mal e muitas vezes restos, como os ratos, o que se refletia em características como atraso no desenvolvimento cognitivo, compleição física atarracada, atrofiada, baixa estatura, etc. Em tempo, gabiru é um tipo de rato, uma espécie de dalitis do mundo das ratazanas.

A fome ainda existe, embora já divida, como objeto de preocupação, a atenção das políticas públicas de saúde com a obesidade, mas seus reflexos foram reduzidos de modo significativo por melhorias nos índices sócio-econômicos do país e por programas sociais do governo. No entanto, quando transformada em telespectadora, a sociedade brasileira assiste agora, do sofá de casa, o surgimento de uma outra modalidade de homem-gabiru, em outro contexto e configuração, o televisivo. São adultos urbanos com a idéia fixa de praticar os atos mais indescritíveis e insanos em troca de uma vaga no estacionamento da fama, mesmo que seja na condição de celebridade de terceira linha.

COBRAS - A Rede Globo, sempre tão asséptica e higiênica na dramaturgia e no telejornalismo, paradoxalmente cai de amores por homens e mulheres gabirus quando o gênero é o entretenimento produzido na modalidade reality show. Moças e rapazes bem nascidos incorporam voluntariamente gabirus. Os desnutridos pela seca e pela fome do Nordeste ou pela ingestão dos restos catados no lixo das grandes metrópoles cederam o conceito aos candidatos a um prêmio nos realities shows de aventura e resistência. Recentemente, vários espécimes de gabirus humanos adentraram a tela da TV nos programas Jogo Duro e No Limite.

No primeiro, a disputa por uns trocados que não somam tanto assim levou gente com todos os dentes e nenhuma fome a interpretar ratos à perfeição, mergulhando em águas sujas, disputando espaço com bichos, insetos, cobras, umidade e o diabo a quatro. O objetivo da ‘tarefa’ era catar cédulas ou outras coisas escondidas para serem encontradas pelas ratazanas humanas comportando-se como roedores de laboratório em testes behavioristas.

ABORTO DE GALINHA - No segundo programa, No Limite, na edição do último domingo, o que se viu foi um espetáculo freak, dantesco e nauseante como poucos vistos na televisão no que se refere à ingestão de elementos indigestos e repulsivos: homens e mulheres malhados, disputando algum dinheiro e um lugar futuro na categoria ex-reality, comiam como bichos, embora visivelmente à beira de um surto de vômito, nada menos que ovos galados de galinha, cozidos, recheados, sob a casca, com pintos prestes a nascer e ‘abortados’ em água fervente.

Aliás, só a modalidade da ‘morte’ dos embriões nos ovos fertilizados prestes a eclodir já renderiam no mundo nonsense da televisão uma discussão entre os defensores dos direitos dos animais, hoje se digladiando enfileirados em correntes ideológicas de nomes estranhos e pouco familiares, como bem-estaristas e utilitaristas. Assim, não tarda e os realities prestarão um grande serviço à causa dos bichos fracos e oprimidos. Ou seja, não tarda e o tema ‘aborto das galinhas’ se tornará pauta nas revistas eletrônicas dos programas televisivos de domingo. Afinal, matar um pinto dentro de um ovo prestes a eclodir para testar a capacidade de resistência estomacal dos participantes de um programa de TV se configura ou não num atentado aos direitos dos animais? Configura ou não a provocação do aborto de pobres galinhas inimputáveis? O mundo anda tão doido que, para cada vez mais pessoas, esse parece ser um tema muito mais crucial para os destinos da humanidade do que a discussão acerca do encontro ou não-encontro entre a toda poderosa ministra Dilma Roussef e a ex-capitã da Receita Federal, Lina Vieira.

BICO - No gênero reality, mais do que o dinheiro em si, interessa aos participantes a fama rápida e fácil, desvinculada de talento ou trabalho profissional. Diante de uma câmera de TV e em busca de fama, qualquer mocinha enfrenta cobras, ratos, água suja, sol a pinho e rotinas adversas em praias desérticas. É capaz de comer olhos crus de animais e pintos abortados à véspera do nascimento, com direito a detalhes sórdidos, como asas cobertas de penugem amarela, bico, cabeça, vísceras e aspecto visual assombroso. O homem gabiru era, é e será muito mais digno, pois tem como alavanca para a atitude insana de comer restos, ratos e calangos assados a fome, a necessidade e o instinto irrefreável de sobrevivência. Já os participantes dos realities devoram cardápios intragáveis em troca de um teste de sofá no mundo da fama instantânea e desprovida de background. Comer pinto abortado com penugem é apenas um degrau para chegar às revistas de nu.


*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 23 de agosto de 2009.
maluzes@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os artigos assinados não representam necessáriamente a opinião do Sentinelas da Liberdade. São da inteira responsabilidade dos signatários. Sentinelas da Liberdade é uma tribuna livre, acessível a todos os interessados.