segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Da tela à vida

TELEANÁLISE

Sentinela – Malu Fontes*

As telenovelas brasileiras têm associadas a si a característica de, mesmo de modo caricato ou superficial, representar boa parte das temáticas do repertório social do país. Alguns pesquisadores do campo da teledramaturgia afirmam, inclusive, que a telenovela é, frequentemente, muito mais liberal e vanguardista, quando da abordagem de uma série de temas difíceis e tabus, do que o telejornalismo e a própria sociedade brasileira. Quando mal se sabia o que era fertilização in vitro, por exemplo, uma novela das seis, horário considerado dos açucarados, já abordava a polêmica em torno das mães de aluguel, em Barriga de Aluguel, 1990, de Glória Perez. Do mesmo modo, quando os sem terra eram vistos com muito mais preconceitos que hoje, uma novela global das oito já agendava o tema, em O Rei do Gado, 1996, de Benedito Ruy Barbosa.

Nos últimos anos, os autores das telenovelas vem inserindo em suas tramas toda a sorte de temas tabus, como a dependência química nas classes altas, o preconceito racial, a violência contra a mulher e o homoerotismo entre casais tanto do sexo masculino quanto do feminino. Um dos poucos temas polêmicos e objeto de tabu que sequer passa perto das tramas novelísticas é a prática do aborto. Embora trate-se de uma prática ilegal, sabe-se que este é um recurso usado por milhares de mulheres no Brasil diante de uma gravidez indesejada. Entretanto, nunca se vê uma personagem de novela optando por essa possibilidade, independentemente da pobreza, do não planejamento, do abandono familiar ou de quaisquer agruras pelas quais passe.

SEXUALIDADE - Afora o aborto, as telenovelas brasileiras são comumente um espaço onde praticamente todo e qualquer assunto difícil pode ser abordado e, automaticamente, transformado em objeto de debate nacional. A transformação dos temas das novelas em discussão nacional é tão garantida que os militantes de uma série de causas sociais dariam o inimaginável para terem suas temáticas inseridas em uma telenovela, a título de merchandising social. Nesse cenário, há algo que chama atenção na relação entre a telenovela e a reação do público: a tolerância e a simpatia populares diante do exercício da sexualidade feminina nas telenovelas e a condenação moral que comportamentos sexuais semelhantes despertam na vida real.

Que o homem brasileiro, de um modo geral, ainda se caracteriza por fortíssimos traços machistas, preconceituosos e misóginos, não há dúvidas. Um exemplo disso são os índices de violência registrados contra a mulher no país. A própria televisão é locus sistemático da publicização de cenas dantescas quando relata, tanto nos telejornais ditos sérios quanto naqueles considerados sensacionalistas, episódios diários de mulheres agredidas, violentadas, mutiladas e assassinadas. No entanto, paradoxalmente, personagens femininas de sexualidade livre são comumente catapultadas da trama de alguma telenovela para a condição de queridinha nacional justamente por seu comportamento sexual. Passando da tela à vida, as atitudes que, na sociedade brasileira, fariam com que uma mulher comum fosse moralmente condenada no grau máximo são, curiosamente, motivos de adoração do público quando adotadas por personagens de novelas.

ADULTÉRIO - O símbolo atual da preferência sustentada pelo comportamento sexual é a personagem de Dira Paes, a Dona Norminha, a traidora contumaz do marido em Caminho das Índias. Exclusivamente por conta do adultério cometido sistematicamente por Norminha, tanto a personagem quanto a atriz se tornaram objetos de culto, de capas de revistas, referenciais de moda (virou hit o sutiã saltando sob os decotes generosos) e sinônimo de símbolo sexual, com convites à Dira para estrelar capas de revistas de nu. No Brasil, aliás, o convite para posar nua e ser capa de revistas masculinas é o indicador incontestável do sucesso feminino. Do mesmo modo que Norminha, por seus rebolados e puladas contumazes de cerca, tornou-se a ‘namoradinha’ da vez do Brasil, o mesmo já aconteceu com a garota de programa Capitu, interpretada por Giovanna Antonelli em Laços de Família e a prostituta Bebel, interpretada por Camila Pitanga em Paraíso Tropical, entre outras tantas de perfil sexual semelhante. Até mesmo a vilã Nazaré Tedesco (Renata Sorrah, em Senhora do Destino), seqüestradora, assassina e ninfomaníaca, experimentou altos índices de simpatia perante o público.

Em todos os casos em que personagens femininas de comportamento sexual liberal, prostitutas, garotas de programa ou ninfomaníacas conquistam a simpatia do público, o fato é que a aceitação manifestada pelo público destoa completamente da reação popular quando se trata de mulheres de verdade que personificam tais atitudes em suas vidas. Enquanto na teledramaturgia mulheres como Norminha transformam-se em queridinhas do público com níveis de aceitação tão altos que levam à confusão carismática entre personagens e atrizes, na vida de verdade as mulheres de carne e osso que tenham comportamento semelhante ganharão indiscutivelmente, no mínimo, a pecha de vagabundas.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.

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