quinta-feira, 4 de junho de 2009

Uma biblioteca nos últimos dias


Sentinela - Luís Guilherme*

Há em Salvador uma preciosa biblioteca que está em adiantada deterioração. Possui cerca de 10 mil livros e periódicos do século XIX e da primeira metade do século XX. Ocupa o Salão Ruy Barbosa do amplo sobrado da Associação dos Empregados no Comércio da Bahia, localizado no centro de Salvador. A secular Associação experimentou grande importância até o meado do século XX. Nela reuniram-se políticos e empresários e a história dos encontros em seus salões reclama urgente pesquisa, antes que também arruínem os antigos documentos e os relatórios como está acontecendo com os livros da sua biblioteca.

Desde 2000, quando me inteirei da situação, tenho manifestado meu desagrado. De modo que encaminhei, naquele ano, correspondência para a Fundação Gregório de Mattos, órgão da Prefeitura Municipal de Salvador que atua na área cultural, apresentando o problema e sugerindo que a biblioteca fosse salva através de permuta por livros mais novos, de modo que o acervo valioso de livros e periódicos datados a partir de 1811 encontrasse destino mais apropriado. Remeti cópia dessa correspondência para entidades e pessoas, com o propósito de obter a solidariedade na luta que inaugurara. Enviei-a para, entre outros, o bibliófilo José Mindlin, o jornalista Jorge Calmon, já falecido, e para a Biblioteca Nacional de Lisboa.

Voltei ao assunto em maio passado durante o II Seminário Nacional Livro e História Editorial – II Lihed –, realizado no Rio de Janeiro e em Niterói, sob coordenação geral do professor doutor Anibal Bragança, da Universidade Federal Fluminense – UFF –, e com a presença de pesquisadores de vários estados brasileiros e conferencistas internacionais, sobretudo franceses, a exemplo do professor Roger Chartier. Denunciei mais uma vez que os livros da Associação dos Empregados no Comércio da Bahia, que certamente não são mais os 10 mil de nove anos atrás, estão em situação mais lamentável do que quando os vi pela primeira vez.

Fiz a denúncia na mesa-redonda CL 3: Livro e leituras nas províncias I, do Colóquio: 200 anos de livros brasileiros, quando expunha, com a professora Flávia Garcia Rosa, diretora da Editora da Universidade Federal da Bahia – Edufba – o trabalho “Apontamentos para a história do livro na Bahia”. É provável que o tema e a denúncia tenham impressionado aquela platéia qualificada, porém não posso reclamar a ação de nenhum deles, uma vez que as autoridades que deveriam se mover para solucionar o problema nada fazem a respeito.

A título de ilustração – ou de provocação aos amantes dos impressos – dou-lhe conta que a biblioteca possui, por exemplo, uma coleção encadernada do periódico A Guerra, publicado em 1915 em Salvador pela C. Tourinho & C.; uma coleção encadernada de O Antonio Maria, periódico publicado em Lisboa e ilustrado por Raphael Bordallo Pinheiro; uma coleção de O Malho, periódico brasileiro do início do século XX, oferecida à Associação pelo jornalista Karlos Weber, que teve expressiva atuação na vida cultural de Salvador. Há ali um exemplar de Lama & sangue, de Cosme de Farias, publicado em 1926 e no qual o autor denuncia o tratamento que o então governador Francisco Marques de Góes Calmon lhe dedicou. Enfim, há na biblioteca livros que foram impressos na Impressão Régia de Lisboa e há livros, ilustrados, publicados na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos dos oitocentos.

O acervo valioso e agredido da biblioteca da Associação dos Empregados no Comércio da Bahia reclama cuidado urgente. Há, certamente, livros raros entre os milhares de exemplares brasileiros, portugueses, franceses, norte-americanos e ingleses. Há livros que foram impressos há quase 200 anos na Impressão Régia de Lisboa... Se o choque que senti em 2000 foi suficiente para que o recorde nove anos depois, constato que a má impressão que disso resultado cresce a cada dia porque nosso grito não ecoa e a cada novo segundo cresce no mundo as desatenções para com o livro, este velho amigo da civilização.

* Jornalista, produtor editorial e professor universitário. lulapt@svn.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os artigos assinados não representam necessáriamente a opinião do Sentinelas da Liberdade. São da inteira responsabilidade dos signatários. Sentinelas da Liberdade é uma tribuna livre, acessível a todos os interessados.