Letra da música Olho de Peixe é objeto de análise
Olho de Peixe - Arte: Ciclotron Irajá* |
Por Denise Lima*
Não assumo posição de que a psicanálise possa interpretar tudo, em especial a arte, em qualquer de suas manifestações ou linguagens.
Não assumo posição de que a psicanálise possa interpretar tudo, em especial a arte, em qualquer de suas manifestações ou linguagens.
Cabe, portanto,
uma advertência: não se trata de recorrer à psicanálise para interpretar
objetos que são estudados em outros campos do conhecimento. Trata-se, sim, de
trazer à luz, a partir da teoria psicanalítica, novas questões que se propõem
em forma de diálogo, que pode resultar em grande proveito para tais campos de
conhecimento, numa perspectiva inter ou multidisciplinar - característica do
pensamento complexo.
Não
se trata, também, de justapor interpretações para melhor compreender um
determinado objeto, mas de estabelecer uma relação entre elas, mantendo suas
próprias identidades, construídas ao longo da história do campo a que
pertencem, respeitando-se as características de irredutibilidade de cada uma,
ainda que – diante do objeto complexo[1] – possa haver
uma fusão (indefinição) em suas fronteiras. Esta relação - que inclui, também,
a contestação, que caracteriza o diálogo – pode levar a novas interpretações e
construções do objeto, como também, eventualmente, a transformá-lo.
Dito
isto, vamos tentar um diálogo entre a visão psicanalítica freudiana e a letra
de Lenine, em sua música Olho de
Peixe. (Apenas para não deixar passar esta ocasião para lembrar uma
questão, exaustivamente debatida: letra de música pode ser poesia? Dizia Wally
Salomão que sim, o que provocou muita polêmica. Deixando à parte, poesia ou
não, podemos pensar que qualquer produção humana deve ser levada em
consideração).
No
que a psicanálise pode contribuir para elucidar sentidos nesta letra de música,
a partir das contribuições desta para dar-nos pistas para a compreensão do
psiquismo humano?
Redoma
de vidro é o que,
primeiramente, chama atenção. Redoma dá uma idéia do campo defensivo do
sujeito, que nada sabe sobre si mesmo e se protege por meio de uma ficção (ou
racionalização), que pouco corresponde à sua própria verdade. Pode representar
as defesas – inclusive a repressão (ou recalque) - do Eu, parte consciente,
grande parte inconsciente.
Apesar
de o Eu ser um lugar
da ilusão e da mentira, ainda assim, não podemos perder de vista que é com o
esse eu que pensamos, raciocinamos, refletimos, tomamos decisões, construímos e
fazemos escolhas éticas. Sem falar no poder que temos, consciente e
determinado, de superar nossas próprias dificuldades.
Redoma
de vidro é uma expressão
bonita e significativa: a defesa, a proteção, podem ser quebradas. É o que
acontece com o retorno do reprimido (ou recalcado), em forma de sintomas,
sonhos, atos falhos, chistes – que são manifestações do inconsciente.
Pulo
para “a mente é como um baú e o homem decide o que nele guardar”.
Não
decide. Não há escolha sobre o que guardar ou não, assim como não há escolha da
orientação sexual. Lembremos Monod, em Acaso
e necessidade, quando diz que o homem tenta, desesperadamente,
negar a contingência!
Se
o homem decide o que guardar em seu baú, talvez isso se refira às lembranças
conscientes que ficam preservadas, as quais fazem parte da ficção que faz sobre
si mesmo. Sem esquecer que as lembranças são sempre
encobridoras, dizia-nos Freud. Fala Lenine: “ele se permite esquecer de
lembrar”. É isso mesmo: por que se permite – inconscientemente – esquecer de
lembrar, repete. Repete situações, padrões, amores, para não se lembrar. A
possibilidade de ruptura dessa cadeia – tratada em Recordar, repetir e elaborar, texto de Freud de
1914 – inaugura a capacidade de invenção, de novas construções.
Dou
um pulo: “na cabeça do homem tem um porão, onde moram o instinto e a
repressão”. Porão é a parte de baixo. É o que vem primeiro, e, de certa forma,
o que sustenta a construção do edifício. Interessante metáfora usada por
Lenine! Pois o que vem primeiro, de certa forma, são as pulsões (instintos) de
vida (pulsões do Eu – autoconservação - e sexuais – preservação da espécie) e
de morte – destrutividade humana. Lá, no porão, não mora a repressão, mas esta
é a condição de possibilidade do porão, onde moram os instintos. Repressão dos
instintos (pulsões) para que a civilização seja possível (Freud, Norbert Elias
etc.).
A
pergunta insistente de Lenine: o
que tem no sótão? O sótão é a parte superior do edifício – para
usar a metáfora espacial - onde se guardam coisas, muitas vezes esquecidas e
sem uso. Se guardadas é porque possuem uma potencialidade (no sentido dado por
Nietzsche), ainda que encobridoras. Mas já é uma pista que Sherlock Holmes não
desprezaria.
Arrisco
dizer que o sótão pode ser uma metáfora para representar o instinto (pulsão)
não reprimido, mas sublimado,
um dos destinos possíveis das pulsões. Ou seja, a capacidade humana de não se
render às pulsões (tanto as sexuais, de vida, quanto às de morte), que torna
possível, ainda que tenha que se valer delas, a produção de uma música como
esta de Lenine.
Grande idéia esta de provocar convergências entre a psicanálise e a letra desta música! Espero ter demonstrado, neste curto artigo, a possibilidade de diálogo que propus fazer, de modo incipiente.
Grande idéia esta de provocar convergências entre a psicanálise e a letra desta música! Espero ter demonstrado, neste curto artigo, a possibilidade de diálogo que propus fazer, de modo incipiente.
Perdoem-me
as frases que não comentei, talvez mais importantes do que as que selecionei.
Outras abordagens farão isso, espero. “O capuz negro que cega o falcão
selvagem”, por exemplo. Forte essa frase. Dá-nos o que pensar! O capuz negro,
tarja preta. Podemos relacioná-lo tanto à censura quanto ao luto. Também ao
anonimato. A censura, o luto e anonimato têm algo em comum: algo que se perde.
Talvez
possamos remetê-lo (capuz negro) a um dos conceitos fundamentais da
psicanálise: a defesa que usamos, totalmente inconsciente, com o fim de não
enxergarmos o falcão selvagem que existe em todos nós. Se o falcão selvagem
deve ser “domado” para que exista Cultura, parte deste selvagem, no que se
refere à pulsão de morte, pode significar uma boa defesa! Se dirigida à pulsão de
vida, esse falcão selvagem deve ser a força criadora, inventiva, persistente,
louca, aquela que promove a Arte, a Ciência e a Filosofia.
Mais
uma coisa a se pensar: a pulsão de vida e a de morte funcionam acopladas...
[1]
Objeto complexo diz respeito à Teoria da complexidade (Morin, Prigogine) que
está sendo adotada como novo paradigma epistemológico para a delimitação do
campo da ciência.
*Denise Maria de Oliveira Lima é psicanalista e tem graduação em Psicologia. Além disso, com formação em Ciências Jurídicas
e Sociais. Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e
Doutora em Ciências
Sociais (UFBA). Professora da Faculdade Social da Bahia, onde
leciona Psicanálise I e II. Escreveu com exclusividade para o Sentinelas da Liberdade.
*Confira entrevista exclusiva com Ciclotron Irajá (http://ciclotrons.blogspot.com.br )para a revista Continente com a repórter Elisa Jacques
:
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Visões simétricas de um ciclope urbano |
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