domingo, 27 de novembro de 2011

A Baciada das almas inadimplentes

TELEANÁLISE


Sentinela - Malu Fontes*


Em contraste com todo o discurso celebratório do jornalismo em torno do crescimento econômico brasileiro e da migração de boa parte da população para degraus mais superiores da pirâmide sócio-econômica, o noticiário econômico vem, também, anunciando um fenômeno dissonante dessa celebração: o alto índice de inadimplência da população brasileira. No Brasil, a inadimplência dos consumidores cresceu 20% em 2010. Trazendo o assunto para a Bahia, segundo dados do comércio, algo em torno de 600 mil pessoas com o nome inserido nos sistemas de proteção ao crédito.

Quem acredita no jogo do contente pode fazer de conta que foi pensando no bem estar de boa parte desse meio milhão de pessoas que a Câmara de Diretores Lojistas de Salvador (CDL) lançou na última semana o I Feirão do Nome Limpo. O evento tem sido, tanto ou mais que um sucesso de público, um sucesso de mídia. Não houve um telejornal que não tenha veiculado matérias sobre o assunto e mais de uma vez. Jornais impressos, emissoras de rádio, blogs, sites, todos agendaram o evento como o mais importante da semana em Salvador, coisa não tão difícil assim, pois, fora os efeitos colaterais da violência urbana, as dores e as delícias do Ba-Vi e os salamaleques de alcova do ex-casal do Executivo Municipal, a cidade anda mesmo, e há tempos, com alguma preguiça de produzir fatos ou discussões relevantes.

MEIO MILHÃO
- Como tudo o que importa sempre se localiza no detalhe, a semiótica do feirão das almas inadimplentes na baciada montada no Centro de Convenções não foge à regra. Os promotores do evento anunciam que o objetivo é retirar mais de 70 mil pessoas do cadastro negativo e inseri-las novamente no mercado do consumo na época mais rentável do ano para o comércio: o Natal e o Réveillon. Se em meio a 600 mil pessoas que não estão pagando nada do que acumularam de dívidas até serem bloqueadas para continuar consumindo, cerca de 10% disso der algum troco pelo que deve e voltar a passar pelo caixa das lojas em dezembro, já é um motivo e tanto para o setor varejista comemorar. Mesmo porque muitos dos inadimplentes, antes de serem impedidos de consumir por terem o nome inserido no sistema de proteção ao crédito já pagaram trocentos dinheiros em juros pelas contas que arrastaram pagando em partes e parcelas até que honrar a dívida ficou impossível.

O ponto mais importante do Feirão não é, portanto, fazer bem ao consumidor perdoando-o. Claro que, para quem está encalacrado, é melhor sair do subsolo do consumo pagando um valor do que o triplo dele. Mas essa não é a moral real da história. A moral é dar liberdade de crédito para que as pessoas se percebam de novo aptas a consumir, se atolem em novas dívidas, levem mais uns 10 meses pagando juros por elas e, em novembro do ano que vem, o ciclo recomece e todo mundo saia ganhando. Ou ache que saiu ganhando, como o consumidor.

VÂNDALOS
- Até aí, nada de estranho. Essa é a lógica do capitalismo, do mercado, do consumo. O que soa dissonante é a reação dos meios de comunicação quando no mundo ocorrem distúrbios como os vistos este ano em Londres, quando centenas de jovens arrebentaram e incendiaram vitrines e lojas para pegar roupas, tênis, objetos de marcas famosas no mundo inteiro e, sobretudo, produtos eletro-eletrônicos. De modo geral, todos os telejornais do mundo adjetivavam a onda de distúrbios de anárquica, apolítica e organizada por uma turba de vândalos. A acusação capital que se fazia aos ‘vândalos londrinos’ era a de que eles não faziam saques de comida, mas de coisas supérfluas. Sim, em um mundo que funciona para estimular o consumo, Oscar Wilde nunca esteve tão certo quanto ao dizer que abriria mão do essencial se lhe dessem o supérfluo.

Assim como os jovens de Londres não queriam batatas de supermercados, do mesmo modo o feirão da inadimplência, que atrai como besouros para as lâmpadas os endividados de Salvador, não está interessado em devolver a essas pessoas o poder de comprar feijão e sal. Mesmo porque já é hora do topo da pirâmide entender que, se vive anunciando o supérfluo como o ingresso para o paraíso, arroz e farofa não contenta quem é adestrado para sonhar com gadgets de tecnologia touch e com as marcas da moda que fazem as vezes de marcadoras de lugar social no mundo. E enquanto as filas de inadimplentes sonhando com a decoração dos shopping centers começavam a se formar às seis horas no Centro de Convenções, o telejornalismo econômico anunciava em suas escaladas que o Nordeste liderava
o ranking da corrida da emissão de novos cartões de crédito. Mais de 43% dos novos cartões emitidos em 2011 no Brasil foram na região Nordeste, fenômeno atribuído à nova classe C em sua ida ao paraíso do consumo.

DESAFINADAS
- O Brasil é um país engraçado. Tem taxas incríveis de analfabetismo infantil e juvenil, o que diz que a ribanceira da educação não pode ser atribuída apenas ao passado, mas governantes vivem fazendo festas institucionais e publicitárias quando consegue alfabetizar uma velhinha de 90 anos, levando-se à hipótese de que talvez deixar crianças analfabetas seja uma inovadora reserva de mercado de alfabetização na quarta ou quinta idade. Do mesmo modo, distribuem-se cartões de crédito com limites acima do compreensível e depois que todo mundo está encalacrado realiza-se uma baciada de almas endividadas para serem perdoadas em praça pública como num batismo num rio Jordão do consumo que purifica de novo para o ingresso no reino do shopping. E para dar sentido a tudo isso às vésperas do Natal, os telejornais locais criaram até uma editoria nova: a da inauguração de decoração de Natal de shopping center. Todos os dias há na TV um coral de criancinhas desafinadas ou de senhorinhas felizes gritando que agora é Natal. Sim, agora é Natal e no ano que vem tem mais feirão de endividados.

*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom- UFBA. maluzes@gmail.com

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