domingo, 27 de setembro de 2009

Notícias da guerra ao lado

TELEANÁLISE

Sentinela - Malu Fontes

Se alguém ainda tinha dúvidas, perdeu de vez o direito de tê-las. Quando um programa matinal como o Mais Você, voltado para donas de casa que querem ver famosos tomarem café dentro da televisão enquanto aprendem umas receitinhas, exibe, às oito da matina de uma segunda-feira, nada menos que uma cartilha televisual ensinando como se deve fazer para sobreviver à violência, é sinal de que a coisa saiu mesmo do controle, não tem mais jeito, enveredou por caminhos irreversíveis.

O pior é se dar conta de que a emissora líder de audiência no país investiu tempo e recursos para a produção de uma simulação de cenas toscas, visando treinar o coitado do cidadão comum a não morrer vítima da violência cotidiana, ou é perceber que a ribanceira brasileira está tão consolidada que a única forma de sobreviver é aprender, e justo com Ana Maria Braga, a como fazer para ficar vivo numa guerra que não foi anunciada oficialmente por ninguém? Em um país onde é Ana Maria quem ensina as pessoas a ficarem vivas, fazer mais o quê?

FALA QUE TE ESCUTO – Para piorar, os atores da simulação da cartilha televisual eram mil vezes piores que aqueles inacreditáveis recrutados pela Rede Record para dramatizar as agruras da vida de quem anda perdido no mundo por não ter no coração o Jesus Cristo da Universal do Reino de Deus. Do mesmo modo, as matérias de cenas fortes usadas subliminarmente no programa Falaque eu te Escuto, também da Record, são mil vezes mais eficientes. O que eram aquelas cenas na quais os ônibus têm apenas meia dúzia de passageiros e todos têm poltronas azuis estampadinhas e alcochoadas para o passageiro deitar-se sobre, encolhido em posição feral, para se proteger de um eventual tiroteio no buzu?

Se em Salvador os ônibus comuns tivessem aquelas cadeiras-poltronas, as espumas ampliariam as chamas que já viraram rotina nas retinas. E o que era, ainda, aquela moça almodovariana, sem a graça e a ironia deste, sem saber se corria para embaixo da cama ou para a sacada do quarto ou sala (sim, nos bairros onde há tiroteio toda hora, há sempre, segundo Ana Maria Braga, um quarto ou sala com varanda ou sacada) para, num cenário de tiroteio na rua, esperar, com sua blusa Bordeaux justíssima, um balaço na cara ou no meio do decote?

VOVÓ DONALDA - Como se a matéria-cartilha fosse pouca coisa para a coitada da dona de casa começar seu dia e semana, anotando receitas de como não morrer ao invés das de bolo, Ana Maria, sempre com aquela entidade de espuma, mais uma vez enfiou o pé na jaca com sua fala estapafúrdia equivocada. Após a obra prima do jornalismo de serviço e a pretexto de ilustrar o quanto as pessoas vacilam e por isso morrem em contextos de violência, mostrou e narrou, com sua cara de pseudo seriedade ornada com aqueles lábios de Vovó Donalda, as imagens registradas por câmeras do circuito de segurança de uma lanchonete onde um assalto terminou com uma moça morta.

Nas imagens, vê-se que a moça, ao perceber o assalto, corre em direção à porta de saída, e, na fuga, morre atingida por um tiro. Ana Maria narrou a cena em termos que deveriam ser considerados criminosos. Com toda a naturalidade, ou desfaçatez, do mundo, afirmou, literalmente, que a moça ‘procurou a bala perdida (sic), ‘foi ao encontro da bala’ (sic), pois, ao invés de correr para os fundos do estabelecimento, que seria a tentativa correta, expôs-se ‘indo ao encontro da bala’. Ou seja, as vítimas, além de treinar guerrilha para não morrer, ainda são responsabilizadas e implicitamente classificadas como estúpidas sem neurônio que não raciocinam no front como deveriam. Pior ou equivalente a ver coisas desse naipe da TV só mesmo ver a seborréia do mundo que atende pelo nome de futuros vereadores comemorando no Congresso a criação de cerca de 8 mil cargos de vereador. Agradeçam essa derrota nacional ao senador César Borges.

PRIMAVERA – Em Salvador, duas semanas depois dos contextos incendiários que se repetiram dias e dias em capas de jornais e cenas de TV, mais um ônibus foi incendiado, terça-feira, no bairro de São Gonçalo do Retiro, desta vez com as chamas lambendo mais dois veículos pequenos que estavam por perto e a rede elétrica. As autoridades da Segurança vieram a público, já nos telejornais da noite, dizer que o novo incêndio nada tinha a ver com os ocorridos nas primeiras semanas do mês. Como não? Não foi, também, coisa admitida pelas próprias autoridades, também uma resposta do tráfico do bairro à morte de um traficante do bairro e a seis prisões? Se isso é não ter nada em comum, então o incêndio foi o quê, senão, de novo, uma demonstração de que o tráfico vai, a partir de agora, responder sempre com fogo em ônibus e ataques a policiais a qualquer ação do Estado contra ele? Se não há nada em comum, então o fogaréu de terça deve ter sido a Primavera, anunciando que chegou ardente.

Para variar, a equipe do primeiro telejornal do dia da TV Bahia achou por bem, na manhã seguinte, confundir a bancada com a copa da emissora. A edição foi aberta com os apresentadores alvoroçadíssimos, mas não por conta de labaredas do tráfico. O motivo do alvoroço e a pauta eram mais nobres: a goleada sofrida pelo Vitória na véspera. Foram uns 10 minutos sobre o imbróglio no começo da edição e mais uns tantos ao final. Por que, afinal, não transformam aquela joça logo num programa exclusivamente futebolístico, com Big Brother nas sedes dos dois times, um BBV e BBB/no Vitória e no Bahia, e deixam os telespectadores de informação órfãos de vez de notícias?



*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado no jornal A Tarde (Salvador/BA), 27 de setembro de 2009. maluzes@gmail.com

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